A Fome de Camões | Page 2

António Gomes Leal
trapeira,

da Virtude embrulhada em seu sudario,
pedindo esmolla á sua irmã
rameira,
e o Crime dando bailes d'apparato,
em quanto o Justo
expira no grabato.
Descobrirei as contas da Avareza
junto ao esquife d'uma virgem
bella,
0. Tedio bocejando á lauta meza, a Fome da mansarda na janella, a
Inveja ululando contra a preza, como uiva á lua a lugubre cadella,

e o Suicidio, nas manhãs geladas, espedaçando o craneo nas
calçadas.
Um dia cantarei a ladainha
da Desgraça e da Forma triumphante,
da
Espada que tilinta na bainha,
da Mascara que ri e passa avante,
da
Fome que ergue as mãos e se definha,
do Leque, da Batina, e do
Brilhante
das lagrimas mortaes do eterno Entrudo,
das miserias do
Cancro e do Velludo.
Por que tem muito que cantar o imperio
e o inferno da Carne e dos
desejos,
porque é eterno e livido o mysterio
da Morte. São eternos
os almejos.
Por que ha lagrimas do berço ao cemiterio,
ha lagrimas
no Amor e até nos beijos,
prantos communs e de grotescos traços

nas miserias dos reis e dos palhaços.
Porque tem muito que cantar as scenas
ó Rua! das extranhas odysseas

das tuas festas, procissões serenas,
do negro sangue que te agita as
veias.
Por que ha remorsos, lagrimas e penas
entre os motins e os
frenesins das ceias.
Por que n'esta funesta e eterna farça.
ai! tanto
chora o actor como o comparsa.
Por que ha bastantes corações vencidos,
altos desejos que não mais
voaram,
sinistros ais e intimos gemidos
lagrimas mudas que se não
choraram.
Sim, ha soluços que não são ouvidos,
lagrimas mortas
que se congelaram,
n'uma miseria, um abandono nobre
como um
enterro n'uma rua pobre!
Porque ninguem conhece onde termina
0. tregeito que rí, soluça, engana, porque a eterna Mascara domina, e é
uma esfinge cada face humana. Porque a Morte em nós ceifa uma
ruina, quando nos rouba na aza deshumana, e esta mulher que ri
com tanta graça, é talvez uma lagrima que passa!
Mas agora eu só conto o Irrevogavel,
mais monstruoso do que um
sonho ardente,
conto a historia funesta, inexoravel,
do Genio morto
á fome, indignamente.
Quero narrar o que é o innarravel!
fazer

sentir o que jámais se sente,
fazer chorar o choro masculino
Do
Genio contra a noute do Destino!
O Genio é um archanjo refulgente
que enrista a lança contra a escura
Sorte,
tem no seu gesto uma expressão potente,
que diz: eu quero! e
empallidece a Morte.
Para o Vulgo porem vil inclemente,
e o
Destino esse cego antigo e forte,
é um guerreiro tragico e proscripto,

e a fronte tem como um luar maldito.
Este vulto, portanto, que caminha
altas horas, ao frio das nortadas,
é
Camões que de fome se definha
nas ruas de Lisboa abandonadas.
É
Camões a que a Sorte vil mesquinha
faz em noutes de fome
torturadas,
elle o velho cantor d'heroes guerreiros!...
vagar errante
como os vis rafeiros.
Morreu-lhe o escravo, o seu fiel amigo,
0. seu amparo e seu bordão no mundo, morreu-lhe o humilde
companheiro antigo, no seu peito deixando um vacuo fundo.
Hoje pois triste, velho, sem abrigo, faminto, abandonado e
vagabundo, tenta esmollar tambem pelas esquinas. Ó lagrimas!..
Ó glorias!.. Ó ruinas!..
Mas não estende o valoroso braço,
que outr'ora trabalhou entre os
guerreiros,
a mão recusa-se a suster o passo
dos transeuntes raros,
sobranceiros.
A Fome roe-o, curva-o o cançasso.
Cospem-lhe a
neve, a chuva, os aguaceiros.
Ó calçadas fataes! nas enxurradas
vae
muito fel de lagrimas choradas.
Ó Capitães! Ó Capitães egoistas!
duras velhas mais duras que o
granito!
ha caso mais sublime às vossas vistas
que mais vos deva
merecer um grito,
mais negro, mais cruel para os artistas,
mais
sagrado, dramatico, infinito,
que mais abale os nobres peitos francos

que um Genio pobre e de cabellos brancos!?...
O Genio continua á ventania
a errar pelas ruas silenciosas,
como

um espectro que dissipa o dia,
como as grandes estatuas dolorosas.

Assim a noute vaga, na agonia
dos martyres das noutes trabalhosas,

até que o sol jorrou pelas viellas,
e ensanguentou os olhos das
janellas.
Começam-se a ouvir esses rumores
das capitaes egoistas acordadas,

a musica dos carros chiadores
que chegam das aldeias retiradas.

Recomeçam as pombas seus amores
sobre as brancas egrejas
penduradas,
e nas torres dos astros companheiras,
a palpitar, nas
glorias, as bandeiras.
Começam-se a ouvir as matutinas
musicas da cidade, e as alegrias

dos gallos com as notas crystallinas
dos sinos com extranhas
simphonias.
O sol lava de glorias as collinas
as torres, os beiraes, as
gelosias,
e como a moça que um amante beija
avermelham-se os
vidros d'uma egreja.
Dos passaros retinem os gorgeios
nas arvores, nas pontas dos eirados,

os vis riachos, os lodosos veios,
correm ralhando, ao sol,
precipitados,
os cavallos remordem os seus freios,
vão passando
aldeões para os mercados,
e atraz dos lentos carros os boieiros

veem sombrios, graves, e trigueiros.
Somente ao Genio uma tristeza enorme
entenebrece todos os ruidos,

como um sombrio coração que dorme,
que já não tem nem sonhos,
nem gemidos!
Só sente uma saudade extranha, informe,
como
aroma dos tempos revolvidos,
das grandes selvas, sombras e
palmeiras
quando o sol desce as ingremes ladeiras.
Os aldeões tisnados dos trabalhos,
recomeçando as horas das fadigas,

recordam-lhes os épicos carvalhos
a sombra, os bois, as sestas tão
amigas!
Fazem lembrar-lhe as curvas dos atalhos,
a ermida, a fonte,
os fenos, e as cantigas,
que elle escutara, pelas luas claras,
ás
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