A Fome de Camões | Page 5

António Gomes Leal
enxerga d'um grabato!
?ó illus?es, ó nuvens peregrinas,?horas da mocidade já fugidas!?illus?es ó princezas perseguidas?galopando em phantasticas collinas,?ó brancas cathedraes de pedra erguidas?com as santas, á tarde, purpurinas?vegeta??es, florestas, ideal?recebei meu adeus no hospital!?
?Como tu, tenho visto,--disse a Fome--?pender muita cabe?a veneravel,?muito craneo de genio, muito nome,?que eu lancei no abysmo do insondavel.?Muitos que a gloria céga e que consomme?d'uma selvagem sede insaciavel,?tenho cingido como a tristes noivos,?e hoje est?o nas raizes, e entre os goivos!
?Muitos tenho apertado entre meus dedos?que se h?o finado n'um febril delirio,?e teem-me dito os ultimos segredos,?com suas bocas lividas de lyrio.?Dormem alguns á sombra d'arvoredos;?mas outros para mais mortal martyrio,?ninguem lhe importa em seu desprezo fundo?onde est?o os seus ossos sobre o mundo!
?Gigantes craneos de candente lava?teem repousado no meu magro peito!?Bem lindos corpos onde a morta crava?seus dentes, dormem sob o ceu perfeito!?Mas, quando um genio como tu, no leito?mata ao abandono a gera??o escrava,?pelo universo, cumplice sombrio,?corre um remorso, como um calafrio.
?Por isso eu vim colher-te, inda tremente?logo que expires, ó Genio, sem confortos,?a lagrima de marmore imponente,?que se gela nas palpebras dos mortos.?Por que quero levar como presente?aos principes, aos povos absortos,?e aos astros a lagrima marmorea,?que n'um grabato derramou a gloria!
?Mas, se acaso na terra e sobre os mares?ninguem avaliar este teu pranto,?acima irei das nuvens e dos ares?dos astros, dos planetas, do Espanto:?mais acima das Dores e dos Pezares,?da Justi?a sublime ao throno santo,?ás solemnes e eternas regi?es,?pedir justi?a ao pranto de Cam?es.?
Dizendo isto a Sombra descarnada?debru?ou-se do Genio sobre o leito.?Cam?es morria já: hirta e gelada?a Fome lhe crusou as m?os no peito:?e a lagrima marmorea, regellada,?lagrima que infunde pavido respeito,?ent?o colheu do rosto moribundo,?--como um frio protesto contra o mundo.
CANTO TERCEIRO
O Len?ol do Genio
O conde Vimioso em seu solar?dá uma ceia a nobres e senhores;?Estalam as risadas pelo ar.?Pelos copos espumam os licores.?A Gula e a Carne ali gosam a par:?falla-se em ca?as, touros, e d'amores:?e riem d'entre as suas pedrarias?marquesas que hoje est?o em galerias.
N'isto um extranho velho entra na salla,?hirto e solemne, como um quadro antigo;?seu porte triste pelos peitos cala,?seu ar hostil é como d'inimigo.?Os risos param, emmudece a falla,?como ao ver um remorso, ou um castigo.?Calam bar?es fallando de corseis,?e as damas com as m?os cheias d'anneis.
E o velho disse:--Extranho é meu pedido!?Extranho sim! no meio d'uma festa:?mas venho por um morto protegido,?e este pedido os labios n?o me cresta!?Para um Genio de que hoje nada resta,?para um Genio da fome consummido,?um Genio infeliz! um apagado sol,?venho pedir a esmolla d'um len?ol!
O lugubre pedido n'um momento?fez em todos ro?ar um calafrio:?figurou-se-lhes o gesto macilento?da morte, ao longe, em seu corcel sombrio:?figurou-se-lhes a Febre, o Passamento,?e a Doen?a em seu catre humido e frio,?e as damas, os bar?es, e os cavalleiros?perderam os sorrisos zombeteiros.
Porém o Conde dominando o gelo?do terror que estragava a sua ceia,?e desmaiava o busto grego e bello?da mulher por quem todo se incendeia,?com um riso que tem do orgulho o sello?bradou ao velho cujo serio odeia:?Que genio é esse ent?o, bom velho honrado,?que comparais ao sol já apagado!?
Todos riram. Um riso irresistivel?omnipotente, intrepido, animal,?pela sala estallou, bronco e terrivel,?como um insulto e a folha d'um punhal,?O rude velho tragico, impassivel,?deixou passar aquelle vendaval,?depois n'um rir, de eronico respeito,?os longos bra?os encruzou no peito.
Zombai--o velho disse--altos senhores!?e magnificas damas scintillantes,?nas ricas pedrarias, plumas, flores,?mais brancas do que os vossos diamantes!?Zombai ao pé dos vinhos, dos licores,?das baixellas lavradas, dos amantes,?d'esta cousa t?o comica e sem nome...?d'um Genio pobre e que morreu de fome!
E o velho riu--Ah! de que serve, é certo,?um Genio infeliz? um portador, de lyra!??de que serve dos Prantos no deserto?um instrumento que uns sons doces tira?!?Um Genio é lava que importuna ao perto,?e um grande craneo que o talento inspira,?se com seu canto consolou as almas....?que coma o louro e as triumphantes palmas!...
Ah! que servem andar como pharoes,?como Moyzés a conduzir um povo,?alvoro?ando as almas para os soes,?n'um canto heroico, original e novo??Se com os prantos d'estes rouxinoes?que alvoro?am e turbam, me commovo,?talvez vos choque e ás almas verdadeiras,?que n?o fa?am crescer as sementeiras!
E o velho riu. As glorias do Passado?dos heroes e dos feitos d'outra edade?nos castellos, no mar illimitado,?hoje fazem sorrir a mocidade!?As glorias d'avós só tem o lado?poetico de dar solemnidade?e grandes tons magnificos, imponentes,?nas sallas, entre as tellas de parentes!
Elle, o Genio, cantou esses combates?dos homens, e das for?as do insondavel?da eterna D?r, naufragios, e os embates?terriveis do que é fragil e mudavel!?Castigou com a satyra os dilates?do arbitrario, do injusto, e miseravel.?Foi poeta, philosopho, e guerreiro.?Só nunca conseguiu ser um toureiro!....
E o velho sorriu amargamente,?com um sorriso caustico, sombrio,?n'um riso superior em que se sente?uma alma forte que jámais falliu.?O Conde ent?o, bradou-lhe secamente,?com um grande ar todo solemne e frio:??Antes de tudo dir-me-has primeiro,?se és fidalgo, pe?o, ou cavalleiro!
?E narra-nos depois, meudamente,?a mim,
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