A Fome de Camões | Page 3

António Gomes Leal
no horisonte,?acabar os seus dias infelizes:?na boa terra M?e deitar a fronte?e entre as vegeta??es, entre as raizes,?misturar sua vida e acerbas dores?com as almas das plantas e das flores!
Para o velho cantor eram fugidos?ai! como luz que para sempre expira,?os bellos tempos jovens e lusidos,?as mulheres ideaes que o Amor inspira!?Rotos, á chuva, os tragicos vestidos,?posta de parte, empoeirada a lyra,?achava-se hoje n'uma rua, ó mundo,?velho, faminto, pobre, e moribundo!
Sem ousar mendigar, como um vadio,?vaga nas ruas da Cidade egoista.?A tarde chega, o bello sol fugiu.?A noute vem, que o cora??o contrista.?Irrompe a lua sobre a verde crista?d'um monte ao longe, e no lagedo, ao frio,
? Genio cae emfim, hirto e sem falla, como um cadaver que se deita á valla.
N'este momento uma mulher gigante,?que pareceu sair d'um pesadello,?pallida e triste, qual saudade errante,?deixando ao vento as ondas do cabello,?t?o magra como a Sombra, o seu semblante?toldado d'um desgosto immenso e bello,?chegou-se ao Genio hirto e abandonado,?como a vis?o d'um sonho torturado.
E disse-lhe: Bem perto d'esta rua?dar-te-h?o, ó mendigo, uma guarida,?n?o dormirás á lividez da lua?e terás leito onde acabar a vida.?Se a Sorte t'esmagou, a Sorte crua,?ergue a cabe?a pallida e abatida,?e ri contente, ó triste, para a e?a,?que em breve vai findar a tua pe?a!
A mulher ajudou a levantal-o.?Cingiu o bra?o ao Genio moribundo.?A Morte que passava em seu cavallo?deu-lhe um sorriso livido e profundo.?--O teu semblante, ó velho, dá-me abalo,?disse a mulher. N?o é vulgar no mundo!?Dize-me pois que cousas tenebrosas?te h?o cavado essas rugas dolorosas!
?Eu fui--o Genio disse--um malfadado?cantor d'heroes e feitos dos antigos!?Amei tudo que é grande e desejado,?e terrivel luctei contra inimigos!?Sentei-me no castello derrocado,?no deserto solar, cruzei os p'rigos!?E com saudade emfim d'estas collinas,?quiz expirar-lhe, um dia, entre as ruinas!
?Ninhos fizeram no meu peito amores,?como andorinhas sobre as cathedraes!?Conhe?o o aroma das malditas flores!?Sei os solu?os dos compridos ais!?Sobre o deserto pallido das D?res,?ninguem como eu peregrinou jamais!?E pelas noutes regeladas, cruas,?chorei com fome, errando, pelas ruas!
?Porém que porta negra agora abriste??Que aspecto é este morto e desolado??Acaso o inferno depois d'isto existe??Acaso é pesadello desmanchado???--Cala-te! disse a Sombra magra e triste,?Cala-te, ó Genio immenso, desgra?ado!?E com sorriso d'express?o fatal?a Sombra concluiu--é o hospital!
CANTO SEGUNDO
No Grabato do Hospital
é alta a noute. A lampada vacilla,?como um pranto, na vasta enfermaria.?Um marmoreo suor frio scintilla?sobre a fronte do Genio, na agonia.?O Genio vae morrer; sobre a pupilla?treme-lhe um pranto á luz bassa e sombria,?mais triste do que o luto d'uma sina,?e um solu?o atravez d'uma ruina.
Junto do leito uma mulher extranha,?com grandes olhos tristes e parados,?contempla-lhe o suor frio que o banha,?e abra?a-o com seus bra?os descarnados.?Como um sol que se p?e n'uma montanha,?s?o frios os seus olhos encovados,?hirta, severa, tragica a postura,?como imagem d'antiga sepultura.
?Já viste--diz-lhe o Genio--ó mulher triste!?que me olhas com teus olhos impassiveis,?morrer no mundo alguem? Acaso viste?as lagrimas da morte irremissiveis!?Acaso, ao magro peito já cingiste?uns bra?os que emfim caem insensiveis,?alguns bra?os d'irm?o que te apertaram,?e que até ás entranhas te gelaram?
?Já conheceste as grandes despedidas?as despedidas sepulchraes, eternas??Já sabes quanto doe irem-se as vidas,?formas, e almas que nos foram ternas??Sabes o fel das lagrimas vertidas,?ou o sangue das lagrimas internas,?n'um rosto amado, uns olhos, um cabello,?que a alma sabe que n?o torna a vêl-o?!?
Ai! sim--a Mulher diz--com voz gelada?que pareceu sair d'entre saudades,?calcadas como lyrios n'uma estrada,?terriveis como pallidas verdades.??Eu cruzei já os reinos e as cidades?do luto, e da miseria desolada,?e vi magoas, e gentes fallecer?que ninguem viu, nem tornará a vêr!?
E continuou a olhal-o fixamente?com o seu olhar tragico e marmoreo,?e um suspiro vibrou profundamente,?dolorido, no vasto dormitorio.?Como atravez d'um sonho incoherente,?n'este sonho da vida transitorio,?O Genio leu, no seu olhar parado,?todo o luto e terror do seu Passado.
?Ah! já sei quem tu és,--o Genio clama--?na rapida scentelha d'um delirio.?Tu és a Musa que apreg?a a fama,?a Musa meu amor e meu martyrio!?Foste tu que accendeste em mim a chamma!?N'essas palpebras roxas como um lyrio,?na pallidez, nos labios desbotados,?vejo a Musa dos genios desgra?ados!
?Tu és a Musa sim d'esses errantes?e tristes peregrinos do Ideal,?d'esses loucos e extranhos viajantes?que andam á busca d'uma fl?r fatal,?d'uma fl?r de tons ricos, scintilantes,?d'uma camelia azul e boreal:?até que morrem n'uma praia nua,?ou nos gelos, a um raio azul da lua!
?Foste tu que inspiraste sempre os cantos?que eu dediquei á Gloria e á Natureza!?Ah! foste tu que me enxugaste os prantos,?e ao luar me fallaste de tristeza.?Desci comtigo ao reino dos espantos!?Comtigo á tarde fui pela deveza!?Comtigo á noute fui, pelas florestas,?apanhar _boas noutes_ e giestas!
?Comtigo eu devassei esses segredos,?das raizes, das Cousas, das Origens,?do germinar dos lyrios e arvoredos,?e fiz aos astros solu?ar as virgens.?Comtigo fui, nas pontas dos rochedos,?debru?ar-me do abysmo nas vertigens,?e andei errante pelo mundo á t?a,?como folha que vai n'uma lag?a!
?Mas hoje gela-me o suor na testa?e convulsa-me o corpo um calafrio.?Desejo, sonho, amor, nada me resta!?Nada
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