intimo jubilo.
E tomava-a no collo, sentava-se com ella á sombra das copadas tamarindeiras ou das laranjeiras em flor, cobria-a de beijos e affagos, entretecia-lhe cor?as de jasmins e martyrios, e olhava-a, assim n'uma especie de adora??o sublime e concentrada, talvez com a recorda??o nos filhinhos, que perdera, e que eram tambem pequeninos como a mimosa Magdalena.
Tinha dez annos a filha do cabinda, quando perdeu sua m?e.
Ficavam-lhe os affagos d'um pae estremoso e os carinhos do negro affei?oado; mas que valia tudo isso? que valia a gotta d'agua para t?o grande sêde? o atomo em face da immensidade desfeita?
O negro, que era dedicado á sua senhora, tanto como á pequenina Magdalena, esqueceu-se da sua condi??o de escravo, e arrojou-se, em um impeto de d?r e d'affecto, a entrar no quarto da moribunda, poucos momentos antes d'ella despedir o derradeiro alento.
Estava junto ao leito Jorge de Macedo, que era o seu senhor, embebendo em beijos lacrymosos o rosto da innocente, que ia em breve ser o seu unico encanto n'este mundo.
Os dois, pae e filha, assistiam angustiados ao desabamento d'aquelle edificio da sua ventura.
O cabinda entrou como perdido, olhou para Jorge com receio, com amor para Magdalena e foi ajoelhar-se, de m?os postas, junto ao leito da enferma, chorando como crean?a.
--Anda cá, cabinda, disse a moribunda, com voz amortecida, ao vêl-o de joelhos, alli, ao pé d'ella. Anda cá; vem vêr como se vai para o céo!...
--Que fazes, atrevido! exclamou Jorge a meia voz.
--Ah! meu senhor! a m?e do escravo é um anjo, e o negro quer despedir-se da sua senhora!
--Sahe, cabinda!
--Oh! n?o! n?o! supplicou este. O negro é escravo, mas o negro tem cora??o!
E abra?ava a roupa do leito para abra?ar a moribunda, chorava como doido, solu?ando em desespero e supplicando com ardor:
--A m?e do cabinda ha-de deixar a sua filhinha e o seu parceiro, a chorarem saudades como o bemtevi do matto? N?o, n?o nos deixes, m?e senhora!
--Papae, atalhou Magdalena, affagando as faces de Jorge, humedecidas pelas lagrimas; o cabinda chora, n?o trates mal o cabinda, que é nosso amigo.
--Oh! sim, sim! acudiu o preto. O cabinda quer muito á sua filhinha, quer muito á sua senhora e muito ao seu senhor! O negro tem alma e n?o tem familia a quem a dar. é, como a palmeira do morro, que n?o tem coqueiro ao lado.
--O negro é bom, meu Jorge, disse a doente a custo. E se te pe?o muito que fiques sendo a m?e da nossa Magdalena, n?o te esque?as tambem de que o cabinda a trouxe ao collo muitas vezes, quando era mais pequenina.
--N?o esque?o, minha Beatriz! solu?ou Jorge.
--E elle n?o ha-de ser mais nosso escravo, n?o, papae?
--N?o, minha filha.
--Mas o cabinda, atalhou o negro, n?o quer deixar a casa do seu senhor, n?o quer viver longe da sua filha.
--N?o, n?o nos has-de deixar, que nós somos todos teus amigos, acudiu a crean?a, affagando o escravo, emquanto Jorge dizia comsigo, no intimo da consciencia:
--O negro tem a c?r do urubú, mas tem alma de pomba rola!
Horas depois, Beatriz, a esposa de Jorge, tinha entregado a alma ao Creador.
Jorge chorava, para um lado, profundamente ferido no cora??o, as d?res da sua viuvez. O negro e Magdalena solu?avam, abra?ados, a perda da bondade da que tanto era m?e d'uma como anjo do outro.
Jorge conheceu, ent?o, até onde ia a dedica??o do seu escravo, a grandeza da alma do negro, e come?ou a olhal-o, a tratal-o e a querer-lhe, muito mais como a um membro da sua familia, do que como a um ente, geralmente visto com desdem, com indifferen?a e até com desprezo.
O cabinda perdera a sua familia, de que t?o barbaramente o separaram, mas havia ganho muito pela sua dedica??o.
Bastavam as festas e os sorrisos de Magdalena, de quem elle dizia sempre:
--Agora n?o tem m?e, é filha do cabinda!
II
O Botafogo é, sem duvida, o mais formoso dos formosos arrabaldes do Rio de Janeiro.
As aguas do vasto Guanabára, que, levemente onduladas, beijam constantemente a fimbria da purpura real da grande cidade, formam, n'aquelle retiro, um como lago de sufficiente superficie, que é orlado, em grande parte da circumferencia, de chacaras magestosas, com vistosos e immensos jardins, vegeta??o opulenta e luxuriante, e explendidos e poeticos panoramas.
Em 1859, Jorge de Macedo, negociante de café em grande escala, e, ao mesmo tempo, abastado capitalista, vivia no Botafogo, em um formoso palacete, circumdado de lindissimos jardins.
Magdalena, a filha do cabinda, n'esta epocha, em que principia a nossa narrativa, tinha desenove annos, e era a fada d'aquelle arrabalde do Rio de Janeiro.
O cabinda estava já entrado em edade, mas vigoroso ainda, e sempre dedicado.
Occupava-se o negro da limpeza das parasitas, que tentavam envadir as aleas dos jardins, e em algum servi?o de Magdalena, sendo, de resto, tractado com toda a estima e amisade.
Magdalena exercia a profiss?o da caridade, n?o cuidando sen?o de dispensar a
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