A Cidade e as Serras | Page 6

José Maria Eça de Queiroz
f?rno da nossa casa! Com o tempo assim t?o lindo, já as mimosas do nosso pateo vergariam sob os seus grandes cachos amarellos. Um peda?o de céo azul, do azul de Gui?es, que outro n?o ha t?o lustroso e macio, entrou pelo quarto, alumiou, sobre a poida tristeza do tapete, relvas, ribeirinhos, malmequeres e fl?res de trevo de que meus olhos andavam agoados. E, por entre as bambinellas de sarja, passou um ar fino e forte e cheiroso de serra e de pinheiral.
Assobiando um fado meigo tirei debaixo da cama a minha velha mala, e metti solicitamente entre cal?as e piugas um Tratado de Direito Civil, para aprender emfim, nos vagares da aldeia, estendido sob a faia, as leis que regem os homens. Depois, n'essa tarde, annunciei a Jacintho que partia para Gui?es. O meu camarada recuou com um surdo gemido de espanto e piedade:
--Para Gui?es!... Oh Zé Fernandes, que horror!
E toda essa semana me lembrou solicitamente confortos de que eu me deveria prover para que pudesse conservar, nos ermos silvestres, t?o longe da Cidade, uma pouca d'alma dentro d'um pouco de corpo. ?Leva uma poltrona! Leva a Encyclopedia Geral! Leva caixas de aspargos!...?
Mas para o meu Jacintho, desde que assim me arrancavam da Cidade, eu era arbusto desarraigado que n?o reviverá. A magoa com que me acompanhou ao comboio conviria excellentemente ao meu funeral. E quando fechou sobre mim a portinhola, gravemente, supremamente, como se cerra uma grade de sepultura, eu quasi solucei--com saudades minhas.
Cheguei a Gui?es. Ainda restavam fl?res nas mimosas do nosso pateo; comi com delicias a sopa dourada da tia Vicencia; de tamancos nos pés assisti á ceifa dos milhos. E assim de colheitas a lavras, crestando ao sol das eiras, ca?ando a perdiz nos matos geados, rachando a melancia fresca na poeira dos arraiaes, arranchando a magustos, serandando á candeia, ati?ando fogueiras de S. Jo?o, enfeitando presepios de Natal, por alli me passaram docemente sete annos, t?o atarefados que nunca logrei abrir o Tratado de Direito Civil, e t?o singelos que apenas me recordo quando, em vésperas de S. Nicolau, o abbade cahiu da egua á porta do Braz das Córtes. De Jacintho só recebia raramente algumas linhas, escrevinhadas á pressa por entre o tumulto da Civilisa??o. Depois, n'um Setembro muito quente, ao lidar da vindima, meu bom tio Affonso Fernandes morreu, t?o quietamente, Deus seja louvado por esta gra?a, como se cala um passarinho ao fim do seu bem cantado e bem voado dia. Acabei pela aldeia a roupa do luto. A minha afilhada Joanninha casou na matan?a do porco. Andaram obras no nosso telhado. Voltei a Paris.

II
Era de novo Fevereiro, e um fim de tarde arripiado e cinzento, quando eu desci os Campos Elyseos em demanda do 202. Adiante de mim caminhava, levemente curvado, um homem que, desde as botas rebrilhantes até ás abas recurvas do chapéo d'onde fugiam anneis d'um cabello crespo, re?umava elegancia e a familiaridade das coisas finas. Nas m?os, cruzadas atraz das costas, cal?adas d'anta branca, sustentava uma bengala grossa com cast?o de crystal. E só quando elle parou ao port?o do 202 reconheci o nariz afilado, os fios do bigode corredios e sedosos.
--Oh Jacintho!
--Oh Zé Fernandes!
O abra?o que nos enla?ou foi t?o alvoro?ado que o meu chapéo rolou na lama. E ambos murmuravamos, commovidos, entrando a grade:
--Ha sete annos!...
--Ha sete annos!...
E, todavia, nada mudára durante esses sete annos no jardim do 202! Ainda entre as duas aleas bem areadas se arredondava uma relva, mais lisa e varrida que a l? d'um tapete. No meio o vaso corinthico esperava Abril para resplandecer com tulipas e depois Junho para transbordar de margaridas. E ao lado das escadas limiares, que uma vidra?aria toldava, as duas magras Deusas de pedra, do tempo de D. Gali?o, sustentavam as antigas lampadas de globos foscos, onde já silvava o gaz.
Mas dentro, no peristillo, logo me surprehendeu um elevador installado por Jacintho--apesar do 202 ter sómente dois andares, e ligados por uma escadaria t?o doce que nunca offendêra a asthma da snr.^a D. Angelina! Espa?oso, tapetado, elle offerecia, para aquella jornada de sete segundos, confortos numerosos, um divan, uma pelle d'urso, um roteiro das ruas de Paris, prateleiras gradeadas com charutos e livros. Na antecamara, onde desembarcamos, encontrei a temperatura macia e tepida d'uma tarde de Maio, em Gui?es. Um creado, mais attento ao thermometro que um piloto á agulha, regulava destramente a bocca dourada do calorifero. E perfumadores entre palmeiras, como n'um terrasso santo de Benares, esparziam um vapor, aromatisando e salutarmente humedecendo aquelle ar delicado e superfino.
Eu murmurei, nas profundidades do meu assombrado sêr:
--Eis a civilisa??o!
Jacintho empurrou uma porta, penetramos n'uma nave cheia de magestade e sombra, onde reconheci a Bibliotheca por trope?ar n'uma pilha monstruosa de livros novos. O meu amigo ro?ou de leve o dedo na parede: e uma cor?a de lumes
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