naturaes, e um violento milagre para que o lobo de Agubio n?o devorasse S. Francisco d'Assis, que lhe sorria e lhe estendia os bra?os e lhe chamava ?meu irm?o lobo?! Toda a intellectualidade, nos campos, se esterilisa, e só resta a bestialidade. N'esses reinos crassos do Vegetal e do Animal duas unicas func??es se mantêm vivas, a nutritiva e a procreadora. Isolada, sem occupa??o, entre focinhos e raizes que n?o cessam de sugar e de pastar, suffocando no calido bafo da universal fecunda??o, a sua pobre alma toda se engelhava, se reduzia a uma migalha d'alma, uma fagulhasinha espiritual a tremeluzir, como morta, sobre um naco de materia; e n'essa materia dois instinctos surdiam, imperiosos e pungentes, o de devorar e o de gerar. Ao cabo de uma semana rural, de todo o seu sêr t?o nobremente composto só restava um estomago e por baixo um phallus! A alma? Sumida sob a besta. E necessitava correr, reentrar na Cidade, mergulhar nas ondas lustraes da Civilisa??o, para largar n'ellas a crosta vegetativa, e resurgir re-humanisado, de novo espiritual e Jacinthico!
E estas requintadas metaphoras do meu amigo exprimiam sentimentos reaes--que eu testemunhei, que muito me divertiram, no unico passeio que fizemos ao campo, á bem amavel e bem sociavel floresta de Montmorency. Oh delicias d'entremez, Jacintho entre a Natureza! Logo que se afastava dos pavimentos de madeira, do macadam, qualquer ch?o que os seus pés calcassem o enchia de desconfian?a e terror. Toda a relva, por mais crestada, lhe parecia re?umar uma humidade mortal. De sob cada torr?o, da sombra de cada pedra, receava o assalto de lacraus, de viboras, de fórmas rastejantes e viscosas. No silencio do bosque sentia um lugubre despovoamento do Universo. N?o tolerava a familiaridade dos galhos que lhe ro?assem a manga ou a face. Saltar uma sebe era para elle um acto degradante que o retrogradava ao macaco inicial. Todas as fl?res que n?o tivesse já encontrado em jardins, domesticadas por longos seculos de servid?o ornamental, o inquietavam como venenosas. E considerava d'uma melancolia funambulesca certos modos e fórmas do Sêr inanimado, a pressa esperta e v? dos regatinhos, a careca dos rochedos, todas as contors?es do arvoredo e o seu resmungar solemne e tonto.
Depois d'uma hora, n'aquelle honesto bosque de Montmorency, o meu pobre amigo abafava, apavorado, experimentando já esse lento mingoar e sumir d'alma que o tornava como um bicho entre bichos. Só desannuviou quando penetramos no lagêdo e no gaz de Paris--e a nossa vittoria quasi se despeda?ou contra um omnibus retumbante, atulhado de cidad?os. Mandou descer pelos Boulevards, para dissipar, na sua grossa sociabilidade, aquella materialisa??o em que sentia a cabe?a pesada e vaga como a d'um boi. E reclamou que eu o acompanhasse ao theatro das Variedades para sacudir, com os estribilhos da Femme à Papa, o rumor importuno que lhe ficára dos melros cantando nos choupos altos.
Este delicioso Jacintho fizera ent?o vinte e tres annos, e era um soberbo mo?o em quem reapparecêra a for?a dos velhos Jacinthos ruraes. Só pelo nariz, afilado, com narinas quasi transparentes, d'uma mobilidade inquieta, como se andasse fariscando perfumes, pertencia ás delicadezas do seculo XIX. O cabello ainda se conservava, ao modo das éras rudes, crespo e quasi lanigero: e o bigode, como o d'um Celta, cahia em fios sedosos, que elle necessitava aparar e frizar. Todo o seu fato, as espessas gravatas de setim escuro que uma perola prendia, as luvas de anta branca, o verniz das botas, vinham de Londres em caixotes de cedro; e usava sempre ao peito uma fl?r, n?o natural, mas composta destramente pela sua ramalheteira com petalas de fl?res dessemelhantes, cravo, azalea, orchidea ou tulipa, fundidas na mesma haste entre uma leve folhagem de funcho.
* * * * *
Em 1880, em Fevereiro, n'uma cinzenta e arripiada manh? de chuva, recebi uma carta de meu bom tio Affonso Fernandes, em que, depois de lamenta??es sobre os seus setenta annos, os seus males hemorroidaes, e a pesada gerencia dos seus bens ?que pedia homem mais novo, com pernas mais rijas?--me ordenava que recolhesse á nossa casa de Gui?es, no Douro! Encostado ao marmore partido do fog?o, onde na véspera a minha Nini deixára um espartilho embrulhado no Jornal dos Debates, censurei severamente meu tio que assim cortava em bot?o, antes de desabrochar, a fl?r do meu Saber Juridico. Depois n'um Post-Scriptum elle accrescentava--?O tempo aqui está lindo, o que se póde chamar de rosas, e tua santa tia muito se recommenda, que anda lá pela cozinha, porque vai hoje em trinta e seis annos que casámos, temos cá o abbade e o Quintaes a jantar, e ella quiz fazer uma sopa dourada?.
Deitando uma acha ao lume, pensei como devia estar boa a sopa dourada da tia Vicencia. Ha quantos annos n?o a provava, nem o leit?o assado, nem o arroz de
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