Scenas Contemporaneas | Page 4

Camilo Castelo Branco
interessavam nada. O que eu queria era a vida, a historia, os soffrimentos, a poesia d'aquella mulher. Eu tinha lido, dias antes, n?o sei que romance, onde vira uma mulher assim...
Appareceu um taboleiro com a cêa. O abbade fez o prato de D. Amelia. Era uma aza de gallinha, que elle mesmo lhe serviu.
Valladares tambem comeu do pucaro da doente. Eu, com o abbade, entramos corajosamente n'um coelho guisado, cuja retaguarda cortamos com um excellente caldo verde, e lourejantes castanhas assadas com manteiga.
No fim, demos gra?as a Deus.
O padre, segundo o seu costume, foi sentar-se á cabeceira de sua cunhada. Eu e Valladares entramos n'um quarto commum.
VII.
O academico tinha uma physionomia franca e insinuante. Conversava comigo sem desdenhosa superioridade. Familiarisamo-nos depressa, como dous futuros companheiros de casa em Coimbra.
Eu fui um grande fallador, n'aquella idade, em que pensava menos. O meu recente amigo sympathisou com a minha garrula eloquencia, e dava signaes de desenfado, quando naturalmente devêra querer dormir, depois de uma fatigante jornada, em dia de neve.
Eu n?o era rapaz que, por delicadeza, calasse a minha curiosidade a respeito de D. Amelia.
--O senhor faz-me o favor de me dizer uma cousa?--disse eu.
--Que é? quantas horas s?o?... s?o 10... quer dormir?
--N?o, senhor: queria saber quem é esta snr.^a D. Amelia?
--é cunhada do padre, e casada com um sujeito, delegado em * * *.
--Isso já eu sabia... pouco mais ou menos.
--Ent?o sabe tanto como eu...
--Mas é d'aqui d'esta aldêa esta senhora? Creio que ouvi dizer que era de Lisboa.
--é verdade... nasceu em Lisboa...
--E como veio parar aqui n'este matagal? Naturalmente perdeu-se, como eu, na serra, por causa da neve, e veio cá bater, e cá ficou! Pois eu dou-lhe a minha palavra de honra, que apenas vir luzir o buraco, retiro-me sem mais ceremonias d'este delicioso covil de cabras.
O meu amigo ria-se. Estava disposto a achar-me gra?a, e o leitor póde tambem rir-se, se lhe aprouver.
E acrescentou ao sorriso:
--Parece-lhe impossivel que a tal senhora viesse de Lisboa para aqui sem ser impellida por um acaso?
--De certo... Já n?o admira que ella tenha tosse de tisica... O que me espanta é ella viver, se cá está desde hontem!... Quando veio ella?
--Ha dous annos.
--Ent?o é eterna... ou santa. Hei-de dizer que encontrei esta martyr a uma minha tia, que é capaz de jurar que a viu fazer milagres...
--O menino é sarcastico! Se o n?o visse t?o inclinado a rir-se de cousas serias, contava-lhe uma historia triste...
--E eu gosto muito de historias tristes... Verá que me n?o rio, quando me dizem alguma cousa que me toque o sentimento. A minha familia chama-me poeta; os visinhos chamam-me tolo; n?o sei bem o que sou; mas o que n?o sou é insensivel... Vê... já n?o tenho vontade de gracejar... Conte-me agora a historia, que eu prometto contar-lhe outra que me fez chorar, porque é uma passagem t?o infeliz, que, se eu fizesse novellas, escrevia uma.
--Talvez as escreva no futuro...
--Eu?... Deixe-se d'isso... O meu mestre de logica diz que eu sou um alarve, e o de rhetoria já me mandou ser aprendiz de alfaiate... N?o tenho habilidade nenhuma. O meu gosto é lêr os sonetos do abbade de Jazente, e as quintilhas do Nicolau Tolentino. N?o sei mais nada, nem quero saber... Vamos á historia, sim?
--Ent?o aproxime-se de mim, que eu quero fallar baixo. Mas, antes de mais nada, promette n?o contar a ninguem o que vou dizer-lhe?
--Pois é segredo!
--é.
--Prometto...
--Pois ahi vai.
VIII.
--Esta senhora viveu em Lisboa até aos dezeseis annos. Hoje o mais que póde ter s?o vinte e dous.
--Só?! Eu calculava trinta e tantos bons, como diz minha tia, quando quer fazer todas as pessoas mais velhas que ella.
--Pois deixemos lá sua tia, que deve ser, pouco mais ou menos, como todas as tias... Vamos com a nossa historia, e depressa, sen?o adorme?o, e o meu curioso amigo perde a occasi?o de saber quem é a snr.^a D. Amelia...
--Isso de modo nenhum--atalhei eu com sobresalto--Prometto n?o interromper a historia.
--Pois bem. O pai d'esta senhora morreu em Lisboa, e o conselho de familia deliberou que a orph? viesse para a provincia, onde tinha tios, e o seu patrimonio em quintas.
Quando appareceu em * * *, os rapazes fizeram-lhe montaria, e disputaram a primazia no namoro. D. Amelia n?o aceitava, nem repellia a c?rte de nenhum. Tinha o mesmo riso para todos, e fallava a todos com a mesma delicadeza.
Havia alli um rapaz que n?o frequentava a sociedade de Amelia, porque n?o frequentava sociedade nenhuma. F?ra educado em Genova, viera de lá aos quinze annos, vivera no Porto até aos vinte e cinco, e quando recolheu á provincia, d'onde sahira de tres annos, com a sua familia que emigrára em 1828, ninguem o conhecia, e elle mesmo n?o queria conhecer ninguem.
Chamavam-lhe celebre, exquisito, excentrico, orgulhoso, impostor, e n?o sei que muitas outras lisonjas do charco de certos espiritos,
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