Salmos do prisioneiro | Page 4

Jaime de Magalhães Lima
banhada pelas chuvas dos derradeiros dias de setembro. S?o legi?es bemditas que conquistam o ch?o e o seu poder e os seus tesouros para os sonhos floridos de verdura, que a primavera sonhará no encanto do colorido esplendor do seu triunfo, e para as messes doiradas do estio, cálice de oiro que se faz em sangue, sustento e amor que nos fortalece o peito e os nossos bra?os e nos aquece e alenta o cora??o.
E os orvalhos que a manh? fez diamantes, e as turgidas sementes a crescerem, seu doce brilho e seu infindo anseio de eterna juventude, eternamente renascida e erguida do pó e da secura, a reden??o das cinzas apagadas do estio na brandura outonal e sua esperan?a, emquanto me adormecem no seu canto, murmurando-me os salmos dos seus córos, louvando ao Deus que os engrandece e exalta, na própria obediência me teem preso, acorrentado à terra na qual bebem todo o vigor e for?a de crescer, e arrebatado aos céus que lhes ensinam, e por eles me dizem, o misterio da sua caridade, a gloria da sua aspira??o e o enlevo da sua formosura.
VII
Vive oculto um misterio em cada peito. Se o sangue o anima e move, insinuou-lhe um ser de luz ou treva, a for?a eterea, a do bem e a do mal, o fogo que consome e o que alumia, a cegueira mortal que precipita em profundas gehenas insondáveis, onde só a piedade vae salvar-nos, e o sonho que alevanta a espa?os limpidos, onde os olhos n?o chegam nem alcan?am e só o nosso cora??o póde subir. E êsse deus íntimo, ou seja luz ou treva, ou d?r ou ben??o, todo respira e vive em um alento, todo nele se evola e nele existe.
O rouco arfar de um peito moribundo, no combate da morte inexoravel; o latejar irado da paix?o, brazas ardentes da cobi?a e inveja; a tremura da ave no seu ninho, sopro ofegante de animal bravio, na incerteza da sorte e seu terror; a timidez da cor?a perseguida, a crian?a dormindo no seu ber?o e os anjos que a visitam e em torno adejam; o cavador prostrado de fadiga, o velho repousando docemente, no repouso de quem já avista proximo o termo dos enganos dêste mundo; a mansa vibra??o das ora??es, o brando devaneio enamorado, e a tortura do mal que é irreparavel, e o anseio oprimido da saudade... Que vidas se conteem em um só alento e no breve erguer do peito que o desprende! Que infinitos misterios nos confessa, em que mudez divina nos descobre o que a voz mais clara n?o traduz, quantas lagrimas chora e em que alegrias de uma celeste luz banha a nossa alma!
Quanto se encerra e vive em um só alento!... Respirar é amor ou avers?o, esperan?a ou dana??o, suplício ou ben??o.
Nunca houve alento que me n?o prendesse. Dos ruins me fez escravo a compaix?o, e aos bons foi por amor que me prendi.
VIII
A viuva contou-me o seu romance, onde nascera e amára e onde chorára, seus folguedos, esperan?as e infortunios, em que Deus lhe ensinára a obediência à sua lei divina.
A casa de seus pais era pequena, nas terras do morgado, ao qual levavam, em cada ano, pelo S. Miguel, o p?o, o vinho e aves, copioso quinh?o, e o melhor, dos bens que o seu amor pedira à terra e a misericórdia do Senhor criára.
Entre a pobreza o mundo lhe sorriu. Na pobreza cresceu e, descuidada, na pobreza cantou, teve alegrias, conduzindo as ovelhas no pascigo pela charneca agreste e pela encosta, segando o prado quando abril floria, debru?ada na ceifa ao sol de julho, tingindo os bra?os no rubor do mosto e erguendo-os ao luar calmo de agosto a tanger a harmonia dos eirados.
Depois, no dia memoravel do arraial, ao pé da capelinha da montanha, quando lá foi a ve-la em sua gloria, t?o linda e t?o garrida de grinaldas por tributo piedoso da candura que lhe guardou e deu quanto a terra sonhou de mais formoso, turvou-se de tristeza a singeleza, e estranhas magoas, venturosas magoas, anseios de paix?o ergueram o peito daquela mesma alegre rapariga, criada na pobreza e no trabalho, enamorada agora do mo?o que a segue e a acompanha, sombra apolinea que a gra?a e a gentileza fascinaram.
E, ent?o, vieram o quebranto que esquece a obriga??o, as tardes prolongadas junto à fonte, segredos murmurados no silêncio da aldeia adormecida, e as timidas palavras de carinho que os labios dizem mal e incertamente, e a mudez de melancólico scismar, e a confiss?o do olhar, ardor sem mancha, onde a nossa alma é luz e o cora??o vencido vem entregar-se. Até que um dia as rosas desfolhadas no limiar da porta anunciaram a quem na estrada fosse na jornada que o céu aben?oára mais um ninho. E ao p?r do sol,
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