Salmos do prisioneiro | Page 2

Jaime de Magalhães Lima
misera e cruel, seus cardos e os espinhos mais agudos, e o nosso desamor, nossa trai??o aquele eterno Pai que nos criou, mais negra e mais cruel que a avareza da terra a mais ingrata.
E a minha alma prendeu-se nessas nuvens, com elas rastejou meu cora??o, esmolando dos céus que o redimissem naquela alvura em que remiram os montes e os cardos e os espinhos mais agudos!
II
Quando a saudade me repete as horas de infancia e candidez, ha longos anos já contadas e passadas, e sempre t?o presentes, renovadas na obsess?o de sonhos procurando um reino de pureza onde n?o chegue o desengano amargo deste mundo que nos perturba a fé e o pensamento, renascem aos meus olhos claramente quantas sombras ent?o me protegiam, quantas árvores ent?o f?ram afago do despertar das minhas ilus?es e das alegrias em que me sorriam. Todas as vejo e todas me repetem a sua formosura e o seu encanto, tais quais nessa alvorada me encontraram, amando-as com um amor que só cresceu, intemerato, isento, incorruptível, sofrendo vária sorte sem mudan?a, a sorte mais contrária e a mais benigna. Em todos os meus passos me seguiu: foi amparo na d?r e acompanhou-me no mais rude trabalho, e no repouso, e na alegria de descuidados dias de ventura.
Aquelas mesmas árvores que amei e o acaso funesto destruiu para consumarem um heroico holocausto de bondade, essas mesmas eu vejo na lembran?a, serenas e vi?osas como as vi quando o meu cora??o as descobriu.
Lá ao fundo da encosta, onde a floresta acaba e vem o prado, ainda vejo, do alto do casal que me agasalhava, toda a espessura do pinheiro manso, a marcar o extremo do valado, cerrada e firme, quási insensível ao vento tormentoso dos invernos, e t?o estreitamente unida e igual que pareciam tomadas de amizade as hastes apertadas para viverem seu diferente viver em uma só vida, a cumprirem fielmente um juramento, para afrontarem juntas o rigor e para juntas se erguerem em exalta??o--comunidade mística de afecto, religioso c?ro de louvor, a entoarem seus hinos recitados, em severa harmonia, por um só breviário.
E à tarde, quando o sol decaía e as formas se afundavam no crepúsculo, e de manh?, quando rompia a luz àlêm dos montes e a custo ia acordando o salgueiral, a várzea e as amieiras, e ainda quando ela em nuvens se perdia e melancolicamente transformava em palidez e sombra o meio dia, sempre dos ramos do pinheiro vinha uma emana??o doirada resplendente, como se o sol ali pousasse sempre, jámais o abandonasse à escurid?o, e o defendesse, para que por sua vez a árvore nos desse, perpetuamente, aquela mesma luz que o sol lhe dava e nunca se apagava nos seus ramos.
A pobreza dos homens há muito arrancou já daquela terra, que esplendidamente engrandecia, o pinheiro rebusto a cuja sombra a minha mocidade, cativada de todo o seu podêr e magestade, muitas vezes pediu que lhe dissesse o segredo da sua aspira??o e o mistério da sua formosura. Há muito é cinza e pó e ao pó volveu, sacrificado a chamas piedosas. Mas a perene claridade dos seus ramos que, constante, o doirava em doce esmalte, ou o sol brilhasse alto ou se ocultasse, êsse sonhar do sol que ali pousava e nunca se extinguia, êsse n?o se apagou nem dissipou e êsse me prende ainda e me fascina. Vive nos céus onde as estrelas vivem; de lá nos ilumina e guia em nossa estrada; perpassa etéreo em toda a imensidade repetindo-me os salmos que eu ouvi aos ramos do pinheiro murmurando sua ardente ora??o à luz do sol.
III
Prendeu-me a rola sob a sua aza. Ao sentir-lhe a carícia desarmou-me de vontade e firmeza que, estando em mim, n?o mais me pertenceram. Cegou-me a c?r morena do seu colo. Sua voz, seu olhar... foram algemas.
Prendeu-me aquela rola do pinhal que balou?ada ao vento, lá no cimo dos ramos mais subidos da floresta, ali canta e se alegra e dali parte cortando o silêncio umbroso adormecido na sonolência ardente do estio, ora erguendo seu v?o à luz do sol, ora airosa pousando tranquila, ora fugindo porque algures pressente um logar mais propício ao seu desejo.
Prendeu-me essa outra rola que em meus la?os por minha arte caíu no cativeiro, a desprendida monja resignada que resa o seu rosário à madrugada e o repete ao luar em seus gemidos, mensageira bemdita do perd?o que a mim, seu carcereiro! me saúda na brandura amorosa dos arrulhos, quando ao romper da aurora eu a visito e, confiada, me vem pousar nas m?os, aquecendo-me o sangue com o seu sangue.
Por que gra?a de Deus ou por que esmola, por que estranha indulgência consentiste, rola cativa, minha doce serva, que em minhas m?os eu prenda as tuas azas, te beije o peito e o toque a boca impura
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