Panegyrico de Luiz de Camões | Page 4

José Maria Latino Coelho
luminosa, apparece o Camões na terra de Portugal.
O Camões é ao mesmo tempo a eloquente voz da posteridade, e a
grandiosa resurreição dos tempos heroicos de Portugal. A sua
penetrante visão intellectual descobre com a perfeição dos seus
contornos immortaes as figuras, sobre que se concentra mais viva e

mais brilhante a purissima luz da vida nacional. A sua previdencia
admiravel adivinha que veem perto os tempos calamitosos, em que a
patria para morrer como Cesar com a grave e severa alteza dos heroes,
precisará de cingir-se na purpura da sua antiga majestade, e compor-se
e adereçar-se nas soberanas vestiduras da sua gloria. Virão épocas
escassas, em que extranhos arrogantes hão de buscar descingir-lhe o
gladio refulgente, desvestir-lhe a loriga impenetravel, e murchar-lhe na
fronte os loiros immortaes. Tudo poderão emprehender. Mas o Camões,
o soldado brioso das guerras africanas e indiaticas, o portuguez, que
amou a patria acima da mulher, e a mulher acima da fortuna, o poeta
que emulou nos antigos a belleza e a correcção, aos modernos superou
no sentimento, ali está colligindo e ordenando nos versos varonis de
uma epopéa nacional, as memorias da terra em que nasceu.
Será na carta da Asia a India portugueza um ponto apenas, mas um
ponto como estes que, em noites de serena atmosphera e de
melancolica e tepida escuridade, estão brilhantemente scintillando, e
esculpindo no ceo a distancias infinitas o seu vivo e eterno resplendor.
Perdemos em grande parte a dominação e o imperio n'aquelles
immensos territorios, onde outr'ora fluctuara, symbolo de empresas
temerarias e felicissimas victorias, a bandeira de Portugal. Mas
ninguem nos pôde nunca pleitear a gloria de as ter primeiro descoberto
e avassallado. Que importa ao nome portuguez, que d'esse vasto e
opulento senhorio não restem quasi já senão memorias?
Cada povo tem na sequencia historica a sua funcção, no grande e vario
drama da civilisação o seu papel. Uns em cada momento na evolução
da humanidade são protagonistas e heroes, a outros cahem no
complemento e execução da obra commum, officios mais modestos,
mas não menos necessarias attribuições. É o principio harmonico e
fecundo da divisão do trabalho applicado á cooperação mutua das
nações, no empenho de fundir e aperfeiçoar a civilisação no decurso
das edades. E d'este modo a noção da patria individual se esconde na
penumbra da humanidade.
A nossa missão não era a de grangear para nós o mundo, mas sim de o
sujeitar e descobrir. Fomos com a espada os missionarios da velha

Europa, enviados a correr os primeiros lances, e affrontar os perigos, a
que ninguem ousara então metter o peito resoluto. A gloria de descobrir
é maior e mais duravel que a de fruir e dominar. A grandeza épica dos
nossos feitos immortaes, mais se aprimora e abrilhanta n'esta
abnegação e desapego, com que dos fructos das empresas
sobrehumanas deixámos aos extranhos o proveito, para nós tomámos a
gloria por salario. Dos grandes e magnificos descobrimentos, com que
se accrescenta e se melhora a civilisação intellectual e a humana
condição, não ficou enfeudada a propriedade exclusiva na geração e na
familia dos gloriosos inventores. Kepler interrogando os ceos e os
planetas, rebeldes e indomaveis até ali, clausurando-os no encerro
perpetuo das suas orbitas ellipticas, vinculou o seu formoso
descobrimento no morgado commum da humanidade. Os segredos, que
o espirito de Newton soube roubar á mysteriosa natureza, doou-os
generoso á sciencia cosmopolita e á civilisação universal. O telegrapho
electrico transmitte o pensamento, sem que esteja agora recatado como
cioso monopolio na familia ou na raça dos seus engenhosos
descobridores. A locomotiva passeia sibilando pelo mundo, sem que
antes do seu curso impetuoso esteja esperando a venia e o signal de
quem primeiro a ideou e construiu. Assim tambem da terra que
lustrámos nas suas mais afastadas e escondidas regiões. A gloria de a
revelar á Europa cubiçosa, vale mais que a vaidosa satisfação de
chamar nosso o que primeiro que ninguem soubemos procurar e
descobrir.
Das nossas aventurosas navegações e das nossas empresas bellicosas
nasceu em grande parte o movimento operado na Europa desde o
seculo XV. Tornámos possivel a sciencia moderna, que era truncada e
imperfeita antes que ensinassemos as gentes européas a interrogar a
natureza, e a descortinar as maravilhas e os segredos de inhospitas
paragens, de mares desconhecidos, de um firmamento novo, onde
brilham, escondidas aos antigos, novas e extranhas constellações.
Revelámos a fórma do nosso globo, a configuração dos continentes, a
continua successão do Oceano, a mudança e a condição dos varios
climas. Patenteámos as riquezas innumeraveis da natureza organica,
nos seus typos disseminados pela immensa vastidão das terras e dos
mares. Atámos novamente os vinculos já rotos e perdidos entre a nossa

civilisação e a nossa historia, e a historia e as civilisacões dos povos
orientaes. Com as nossas maravilhosas aventuras fizemos uma patria
gloriosa e impozemol-a
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