Pátria | Page 9

Junqueiro Guerra
a chorar...
As
canções dos mortos
São suspiros mortos...
Deixem-nos cantar...
deixem-nos cantar!...
O REI:
O doido! o doido! o doido!
A MESMA VOZ, _na escuridão_:
Não lhes tenham mêdo... deixem-nos cantar...
SCENA VI
Entram Ciganus e Opiparus acompanhando o fantasma, em meio de
escudeiros armados e com archotes. O doido aparece tal qual o
descrevemos: enorme, cadavérico, envolto em farrapos, as longas
barbas brancas flutuando. Numa das mãos o bordão. Na outra um vélho
livro em pedaços. Lembra um doido e um profeta, D. Quixote e o rei
Lear. O olhar, cavo e misterioso, é de sonâmbulo e de vidente. O rei
empalidece como um sudário. Os cães ululam, furiosos e trémulos.
CIGANUS:

Eis o doido... É curioso êste Matusalem...
Como se chama? onde
nasceu? de onde vem?
Ignora tudo... Canta e soluça...
OPIPARUS:
De resto,
Não tem fúrias, nem anda armado: um doido honesto.
O REI:
Que estafermo!... que monstro!... Um espião, talvez...
OPIPARUS:
Deixou-se maniatar, prender, qual uma rês
Submissa... Não, um
doido...
CIGANUS:
Um doido extravagante... Quem és? Despacha a língua... olha que estás
diante
D'el-rei... Diz o teu nome...
OPIPARUS:
O teu nome, vilão!
O DOIDO, _absorto_:
Como me chamo... como me chamo?...
Ai! não me lembro... perdi o
nome na escuridão...
CIGANUS:
Sempre a mesma resposta inalterável...
O REI:
Diz
De donde vens? onde nasceste? em que país?
Nada temas...
El-rei é bom, podes falar...

O DOIDO, _sonâmbulo_:
Não tenho alma... não tenho pátria... não tenho lar...
O REI:
Traz um livro na mão, reparai...
CIGANUS, _tomando o volume, que o
doido entrega, pesaroso_:
Deixa ver... Deixa-mo ver... um livro antigo... Sabes ler?
Tu sabes
ler?
OPIPARUS:
Anda, responde, não te encolhas...
CIGANUS, _abrindo o livro_:
Nem princípio, nem fim; trapos todas as fôlhas.
Folheando e lendo:
«_Esta é a ditosa pátria minha
amada...
Alguns traidores houve algumas
vezes...
Porque essas honras vãs, êsse oiro puro
Verdadeiro valor não dão...
........................................
A que novos desastres determinas
De levar êstes reinos, esta gente?...

........................................
..............apagada e vil triteza_...»
O REI:
Parece verso...
CIGANUS, _restituindo o livro_:
Um alfarrábio fedorento, Coisa de prègador, talvez... cheira a
convento...
CIGANUS:
Quem sabe se algum vélho ermitão alienado,
Dêsses que vivem sós,
longe do povoado,
Em ermos alcantis ou cavernas de fera...
OPIPARUS:
Onde dormes?
O DOIDO:
Dormir!... dormir!... Oh, quem me dera
Dormir!... Oh, quem me dera
esta cabeça vaga,
Esta cabeça tonta, arrimá-la a uma fraga,
E
quedar-me p'ra sempre esquecido no chão!...
E os mortos dormem... e
eu morri... então... então
Porque não durmo?!...
Vagueando os olhos esgazeados pelos retratos da dinastia de Bragança,
e como que recordando-se gradualmente, em sonho, dum escuro
passado, abolido e longínquo:
Olha os bandidos... os traidores!... Bem nos conheço!... fôram êles...
subtilmente
Rosnam os cães, enfurecidos.
Com drogas más e com venenos de serpente,
Sem eu saber, de noite e
dia, a pouco a pouco,
Me levaram a alma e me tornaram louco...


Enlouqueceram-me, endoidaram-me os bandidos!...
A minha alma!...
a minha alma!... Ouço gemidos...
São talvez dela... tem-na aqui
encarcerada...
Onde estás, onde estás, alma desamparada?!...
Grita
por mim!... onde é que estás?!... Ai, quero emfim
Ver-te comigo...
Onde é que estás?!...
Os cães, truculentos, investem com êle. Resignado e com desprêzo:
Ah, cães danados... cães d'el-rei... mordei, mordei
Êste corpo sem
alma!... Ah fôsse outrora... outrora!...
E ai dos cachorros e do dono!...
Assim... agora...
Mordei, mordei, ladrai, despedaçai sem p'rigo
A
minha carne e os meus andrajos de mendigo!...
CIGANUS:
Coitado! um noitibó maluco e mansarrão...
OPIPARUS:
Delírio de tristeza e de perseguição...
O REI:
Astrologus talvez o conheça...
CIGANUS:
O farçante!
Prègador, impostor, mágico, nigromante,
Meio raposa e
meio c'ruja...
O REI:
É tal e qual... perfeito...
Mas o demónio do mostrengo tem seu geito

Para enigmas... Quem sabe!... Ide-o chamar... talvez...
SCENA VII
Opiparus vai em procura do cronista. O doido, sonâmbulo, vagueia em

tôrno do salão, contemplando os retratos. O rei ao lume, junto dos cães,
segue-o com os olhos.
CIGANUS, _meditando_:
Bem complicado êste cronista!... Quem o fez
Teve artes de engendrar
singular criatura,
Contraditória, ondeante, incerta, ambígua, obscura...

Há duas almas no mostrengo: a que arquitecta
Quimeras vãs e
sonhos vãos, a do poeta
Lunático, imbecil, místico, iluminado,
Essa
deixá-la andar, que me não dá cuidado!,
Mas a outra, a ambiciosa, a
gulosa, a mesquinha,
A refalsada, (a verdadeira!) a igual à minha,

Essa mais devagar, Saltamontes... cautela!...
Ôlho nela... ôlho nela...

O rei é tudo, o rei fraco... êste cronista
Discursa bem... convem não
o perder de vista...
Inútil. Afinal as duas almas ao cabo
Destroem-se
uma à outra, é como Deus e o Diabo.
E emquanto que ambas a ferver,
drogas contrárias,
Em mil combinações, imprevistas e várias,
Se
desagregam, eu, tranqùilo e resoluto,
Como tenho uma só, imagino e
executo.
Ah, o cronista ambíguo e magro e macilento
Não pasmarei
de o ver ainda num convento...
Bem capaz de morrer, jejuando,
ermitão...
A loucura subtil envolve-o...
Que trovão! Que relâmpago!... Brada o vento... ulula o mar...
E êste
doido esquisito e singular, a olhar...
A olhar... Que leve o demo a
noite e a ventania...
O REI, _seguindo o doido com os olhos_:
Pois agora embirrou! não larga a dinastia...
O DOIDO, _absorto_:
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