Os meus amores | Page 2

Trinidade Coelho
Inverno o vento assobiava l��gubre, e as ��guas faziam remoinho, o que era um perigo para os pobres barcos que se aventurassem incautos, num descuido involunt��rio--simples remadela pouco a tempo, manobra menos segura de leme, ou impulso errado de vara.
E ent?o, cabe?os enormes de um lado e doutro, projectando sobre o largo leito do rio a sua sombra pesada e desconforme, que mais triste fazia o sitio e parece que mais solit��rio, pois fechavam-no bruscamente, fazendo limitada a paisagem.
A todo o comprimento da margem, o rebanho p?s-se ent?o a beber manso e manso, e sem o m��nimo ru��do.
Foi quando o Gon?alo acabou de se convencer que na margem de l��, um pouco mais abaixo, outro rebanho bebia tamb��m.
--Tate, Gon?alo! Aquela chocalhada...
E im��vel, remordendo o l��bio, com o ouvido �� escuta, pensava:
--Ora se ser�� ela?...
S��bito, estremeceu. Ante o seu esp��rito infantil perpassou, como um clar?o de relampago, a imagem de uma rapariga, pastora como ele, com quem se havia encontrado mais vezes, mas que havia muito n?o vira.
--Ai, se fosse a Ros��ria!... dizia consigo.
E impondo sil��ncio ao rebanho, que acabara de beber, p?s-se atentamente �� escuta do tilintar dos chocalhos na margem oposta.
?O rebanho parecia o mesmo, l�� isso... Agora o pastor �� que podia ser outro que n?o a Ros��ria...?
Sen?o quando, uma ideia lhe acudiu que o fez sorrir de contente. Atirou ao ch?o a manta e o marmeleiro, e puxando para diante o bornal, feito da pele de uma ovelha branca, morta pelas segadas, tirou de l�� a sua flauta e p?s-se a tocar apressadamente um trecho de cantiga r��stica.
No mesmo instante, uma voz muito sonora gritou-lhe:
--Eh l��, Gon?alo, ��s?
O pastor desatou a rir.
--Uh l��, Ros��ria, eu mesmo! Guarde-te Deus, pimpona!
E logo a voz fresca da rapariga lembrou:
--N?o te esqueceu a moda, rapaz!
--Isso esquece ela!... Ouviste, Ros��ria?--Se outra fosse que ma tivesse ensinado...
Neste meio tempo j�� o Gon?alo retomara a manta e o marmeleiro para ir ter com a Ros��ria. Mas primeiro perguntou:
--Boto pela ponte, ou ��s tu que vens, �� cachopa?
--Vem tu da��. Por c�� sempre �� outra coisa p'r'as ovelhas. H??
--Basta!
E dando o sinal da partida, o Gon?alo p?s-se em marcha. Da�� a pouco, entrava mais o rebanho pela velha ponte mourisca, toda severa de constru??o nos seus tr��s arcos lan?ados sem elegancia, atufados de parasitas seculares que a faziam pitoresca, heras, silvas, ortigas bravas.
A meio da ponte, m?o piedosa fizera construir pequeno orat��rio ao Senhor Salvador, cujo rosto sereno, espreitando por grades de arame, diziam dar coragem a barqueiros e almocreves, que ante o pequeno e humilde nicho com respeito se descobrissem, e com devo??o rezassem uma velha prece que era como um talism? precioso para livrar de maiores desgra?as--naufr��gios no rio, e ent?o maus encontros por aqueles caminhos escabrosos, que eram um perigo constante para homens e animais.
Da�� a pouco, as duas crian?as estavam perto uma da outra, cada qual seguida do seu rebanho.
--Ora viva a Ros��ria!--disse o pastor muito alegre, parando defronte da cachopa.
--Bons dias, Gon?alo; ent?o que ventos?
Entre os dois travou-se ent?o um longo di��logo em que se contaram tudo o que haviam feito desde aquele dia em que ambos tinham voltado juntos da feira dos Cani?os.
--Por sinal que nem r��s se vendeu!--lembrou o Gon?alo.
--Por sinal!--disse com pena a Ros��ria.
Mas ele contou que viera por ali muitas vezes, muitas, sempre na f�� que a encontrava. ?V��-la agora, s�� por milagre de santo; quem o havia de sonhar! Nanja ele...?
--Mas se eu estive t?o doente!--volveu triste a Ros��ria.
E como o outro acudiu a informar-se, ela explicou:
--Umas quart?s que me tiveram mondada! A peste as mate! Febre que era mesmo lume desde manh? at�� ao escurecer... Uma assim!
E na sua ingenuidade infantil, contou ao Gon?alo que muitas vezes, na febre, sonhara com ele, que se encontravam os dois por montes e prados, como agora tinha acontecido, ?tal e qual?.
--Assim te Deus salve, �� Ros��ria?--atalhou r��pido o pastor, a quem enchiam de orgulho os sonhos daquela pequena amiga.
--Assim; pois que d��vida?--tornou-lhe confiada a Ros��ria.
--N?o!--disse agastado o Gon?alo.--N?o h��s-de dizer assim... Diz certo, h��s-de jurar direito.
--Pois assim me Deus salve...
--Como �� verdade...--Diz tudo, Ros��ria!--suplicava o pastor.
--Sim, volveu-lhe paciente a companheira,--como �� verdade que sonhava que nos encontr��vamos--concluiu por fim, muito risonha.
E sem disfar?ar o j��bilo, prestes o Gon?alo a certificou de que tamb��m n?o a esquecera. ?Tanto �� que tirava da flauta as cantigas todas que ela lhe tinha ensinado.?
--Lembras-te?
A Ros��ria faz que sim com a cabe?a. E logo, batendo na flauta de sabugueiro, o pastor apressou-se a declarar:
--Saem daqui sem falhar uma.--E resoluto:--V�� feito, Ros��ria, pede por boca!
A Ros��ria pediu ent?o a Pastorinha.
--Eu �� da que mais gosto,--explicou.--�� a mais linda.
--E ��!--concordou o Gon?alo.--Ora escuta l��.
E levando aos l��bios a avena, p?s-se a tocar a Pastorinha, enquanto a Ros��ria, com a sua vozita em surdina, entrava a tempo com a letra:
Onde v��s, �� Pastorinha, Ai-li, ai-li,
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