Os meus amores | Page 9

Trinidade Coelho
da malta em alvoroço, com a arreata do burro na mão
esquerda, e na direita o minacissimo cacete, berrava que o deixassem,
que ia tudo razo--«com seiscentos milhões de diabos!»
Seguiu-se altercação, vieram razões de parte a parte, insultos.
--Já lhe disse que você é um ladrão!
--Ladrão será você!--tornou-lhe o outro já de pé, avançando de punhos
cerrados.--E não m'o diga outra vez, que o racho!
Afflictas, algumas mulheres voltavam-se, de mãos postas, para a
capellinha proxima, rogando o soccorro da Virgem. O lavrador entrava
de tremer como varas verdes, desfigurava-o a raiva, uma saliva muito
branca bordejava-lhe os cantos da bocca. Pela camisa rota, via-se-lhe já
um pedaço de hombro. Tinham, alfim, conseguido arrancar-lhe o cacete,
mas agora esbracejava, punhos no ar sobre aquellas cabeças em
desordem.
Já, para uns certos do grupo, o homem do burro se
desculpava:--«tinha-o comprado a uns ciganos, fossem lá adivinhar que
o burro era roubado...»
--Vê, sr. Thomé? acudiram logo uns poucos.--O homem não tem
culpa.--E gritavam-lhe aos ouvidos:--Não tem culpa! Comprou o
animal na boa fé. Vês-ahi está!
--Mente! objectava incredulo o Thomé, cada vez mais irado.--Mente!
--Mente?! perguntava o outro de lá, assanhado.
--Como um judeu! cuspia-lhe da outra banda o Thomé.
De modo que para o convencerem, foi preciso afinal leval-o quasi á má

cara, chamar-lhe homem de rixas, despropositado, bulhento. Elle então,
abrindo os braços como se fosse para nadar, socegou um pouco,
amainou,--prometteu levar aquillo com paciencia, ás boas. Chegou
quasi a pedir desculpa, limpando com a manga branca as bagas das
camarinhas.--«Mas tinha perdido a cabeça, que lhe queriam?»
Chegou-se por fim a um accordo. «Sim, senhores, accommodava-se,
mas punha uma condição: largasse elle o burro, e o burro é que havia
de resolver...»
--Serve-lhe o contracto?
--Qual contracto?
--Mau! Larga-se o burro, você entende? deixa se o burro ás soltas.
Depois, é p'ra onde elle fôr. Se o burro larga p'ra traz, lá p'r'as bandas
d'onde você vem... Você d'onde vem?
--Dos Casaes.
--Pois ahi está. Se o burro tomar p'r'os Casaes, o burro fica seu...
--E tomando direito á aldeia, é do sr. Thomé,--concluiram alguns do
grupo, conciliadores.
--Nem mais! Serve-lhe assim? Diga se lhe serve assim.
Por um desfastio, o outro concordou. Mas lá lhe parecia historia que o
burro tomasse para a aldeia... Vinha de tão má vontade, que até lhe
custara tiral-o de casa.
--Olhe que vae pr'os Casaes! Digo-lhe então que vae pr'os
Casaes...--affirmou.
--Melhor p'ra você. Mas nós veremos p'ra onde vae. Você está pelo
dito?--quiz saber o Thomé.
--Sim senhor, estou! Pois que duvida tem que estou? disse-lhe o outro
n'um rompante. Olhe: uma, duas, tres; ás tres largo-lhe a arreata.

Ia já a abrir a bocca para dizer--«uma!»
--Alto! fez o Thomé. Espere lá um pouco. Primeiro hei-de fazer duas
festas ao animal.
E pôz-se a bater-lhe na anca, no pescoço, no peito, demorando-se um
pouco a fital-o de frente, «para que o animal o conhecesse.»
--«Sultão»! gritou-lhe de repente. Eh! «Sultão»!
O burro estremeceu... Dir-se-hia que no fundo da sua memoria, a
lembrança porventura adormecida d'aquelle nome despertara
subitamente...
--Eh! Eh! riu-se muito satisfeito o lavrador. O burro, agora, vira-se p'ra
ali. Isso. Nem é p'r'os Casaes nem p'r'o logar. Assim. Eh! Eh!
E afastou-se para o lado, aguardando.
Uma anciedade dominava n'aquelle momento os do grupo; o Thomé
pôz-se a roer as unhas, nervoso...
--Então você porque espera? perguntou.
Ouviu-se logo a voz do outro, dizendo:
--Á uma!...
O Thomé sentiu um calafrio; sapateava nervoso, cheio de medo, o olhar
de esguelha, e entre os dentes ferrados o pollegar da mão direita...
--...ás duas!
--Ih! c'um raio!... dizia baixo o Thomé.
E sem querer, os olhos cerraram-se-lhe com força.
--...ás tres!

Foi então um barulho de palmas, um berreiro atroador de vivas e
gargalhadas! O Thomé vencera: corriam todos a abraçal-o, affirmando
que o caso era para foguetes.
--Viva o sr. Thomé! Viva o «Sultão»! Aquillo é que é burro!
--Aquillo é que é amigo, hão-de vocês dizer!--emendava o Thomé a rir.
Tenho-os com dois pés, que não valem metade...
--Oh! sr. Thomé! protestavam alguns.
--Isto não é com vocês, mas é como quem se confessa... Está visto que
não é com vocês.
E ria, ria como um perdido, emquanto, estrada fóra, o «Sultão» corria
que voava, cauda no ar, corda de rastos, perdendo-se por fim lá ao
fundo, na poeirada immensa da estrada, como que nimbado n'um
resplendor de apotheose. E na peugada do burro, esbaforido e como
doido, seguia agora o lavrador, após o fraternal abraço, pregado no dos
Casaes...
Quando o Thomé chegou a casa, offegante, a suar, cheio de gestos e de
palavras entrecortadas de riso, já o «Sultão», relinchando, pateava á
porta do antigo cortelho, n'uma grande impaciencia, um «rap-rap»
continuo na soleira.
--Venham vêr! Venham cá vêr! berrava o Thomé para a
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