manh?s do outomno, Jorge sahiu a pé, a passear pelos campos. Errou ao acaso por bou?as e tapadas, seguiu a estreita vereda a custo cedida ao transito pela s?frega cultura nas terras marginaes do pequeno rio da aldeia. Depois, subindo a uma eminencia, parou a contemplar do alto o aspecto do feracissimo valle, que suavemente se lhe abatia aos pés, e no fundo do qual se erguia, d'entre veigas e pomares, a Herdade, de que já fallamos.
Jorge sentou-se sobre uma d'essas enormes moles de granito, que se encontram com frequencia em certos logares da provincia, soltas pelos montes, como se fossem roladas para alli em remotas eras por m?os de fundibularios gigantes, empenhados em encarni?ada lucta. Os olhos dirigiram-se-lhe instinctivamente para a Herdade, onde se fixaram, como se com for?a irresistivel os attrahisse o espectaculo que via.
Era a época de mais intensa vida nas granjas. Os cereaes, cobrindo as eiras, lourejavam aos raios desanuviados do sol; carros, a vergarem sob o fardo das colheitas, transpunham lentos as portas patentes do quinteiro, chiando estridorosamente; apinhavam-se além em montes as cannas e o folhelho de milho, restos de recentes descamisadas; longas series de mêdas elevavam-se mais longe, á maneira de tendas em um arraial de campanha; juntas de bois, já livres do jugo, repousavam das fadigas d'aquelles dias de azafama, ruminando em socego; os mo?os da lavoura iam e vinham, atarefados em diversos misteres; e de tudo isto erguia-se um clamor de trabalho, que o socego dos campos e a serenidade do dia deixavam chegar distincto até o alto da collina.
O dono da Herdade, o antigo criado da Casa Mourisca, presidia áquellas tarefas, e em volta d'elle moviam-se, saltavam e riam duas ou tres robustas crian?as, com quem brincava um formidavel rafeiro.
E era esta a scena que Jorge contemplava, e que em t?o profundas medita??es parecia absorvêl-o. De repente distrahiu-o o som dos passos de alguem que se aproximava d'aquelle mesmo logar, em que t?o desapercebidamente lhe ia correndo a manh?.
Voltando-se, viu seu irm?o Mauricio, que em traje rigoroso e competentes petrechos de ca?a, e com a esmerada elegancia e apuro, que lhe eram habituaes, subia a collina, precedido de dois ou tres c?es de boa ra?a, que de longe descobriram Jorge e correram para elle, afagando-o, com latidos e cabriolas.
Mauricio, assim avisado e conduzido pelos c?es, veio ter com o irm?o, exclamando jovialmente á distancia de alguns passos:
--Em flagrante delicto de medita??o poetica, o snr. Jorge! Bravo! Já n?o desespero de te vêr um dia fazer versos.
Jorge respondeu, encolhendo os hombros:
--Quem se senta no alto de um monte, depois de subir toda a encosta d'elle sem parar, póde fazêl-o simplesmente com o prosaico intento de tomar f?lego. Se isto fosse symptoma de poesia, ent?o...
--Pois sim, mas já isso de subir o monte com as m?os vazias, como estás, sem uma espingarda que revele um razoavel fim no passeio, é um symptoma importante. Quem é que se dá ao incommodo de uma ascens?o d'essas, quando o gozo da perspectiva que espera encontrar lhe n?o compensa as fadigas? E quem tem d'essas compensa??es sen?o os poetas, que s?o os unicos que sabem ce qu'on entend sur la montagne?
Avez vous quelque fois, calme et silencieux, Monté sur la montagne en presence des cieux?
E, a recitar os primeiros versos da poesia alludida, sentava-se ao lado do irm?o, pousava a espingarda, e descobrindo a cabe?a, sacudia aos ventos os formosos e bastos cabellos castanhos, objecto de muitos cuidados seus.
Os c?es andavam inquietos a farejar por entre as urzes e as tojeiras do monte.
Interrompendo de subito a recita??o, Mauricio proseguiu:
--Mas que teima a tua em te mostrares frio ante estas magnificencias! Que escrupulos póde haver em declarar isto tudo admiravel? Repara como é bem talhado aquelle córte além, no monte; parece feito de proposito para deixar vêr no plano posterior aquella povoa??o distante, que n?o sei que nome tem. E alli o campanario, com a sua alameda? Quem teria a feliz inspira??o de o assentar t?o bem? Onde é que elle ficaria melhor? Parece que andou um gosto de artista a dirigir estas coisas.
E acrescentou, suspirando:
--Ai, na aldeia o scenario bem está, pouco tem que se lhe diga; mas os actores e a comedia que aqui se representa é que s?o de uma insipidez!
Os instinctos urbanos de Mauricio, cuja indole mal se accommodava á simplicidade campesina, e o fazia suspirar pela vida das capitaes, arrancavam-lhe frequentemente d'estas exclama??es.
Jorge, que escutára o irm?o sob uma meia distrac??o e sem desviar os olhos da Herdade, replicou-lhe sorrindo:
--Ha quasi uma hora que estou aqui, e posso jurar-te que n?o tinha notado uma só d'essas particularidades da paisagem que descreves.
--Gostas mais da contempla??o em globo. Até isso é de poeta. Analysar minuciosamente as impress?es recebidas n?o é o seu forte.
--Enganas-te ainda; n?o era tambem o conjuncto da paisagem que eu observava;
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