Os fidalgos da Casa Mourisca | Page 5

Júlio Dinis
cuja efficacia nunca se desmentia. A alma d'aquelle anjo assistia ainda á familia, que o chorava, e á sua mysteriosa direc??o obedeciam todos, sem o perceberem.
Morta aos dezeseis annos, Beatriz vivia ainda nos logares que habitava.
Ha entes assim, cuja influencia posthuma lhes dá uma quasi immortalidade, á maneira da luz sideral, que continua a scintillar para nós, depois de aniquilado o fóco que a emittia.
O padre Januario tornou-se desde ent?o a creatura indispensavel, e a companhia exclusiva de D. Luiz, que via n'elle o unico representante da sua antiga c?rte.
Acerrimo partidario do regimen absoluto, apesar de lhe n?o ser possivel enfeixar dois argumentos serios em defeza d'elle, o padre Januario passava a vida aproveitando os mais ridiculos ensejos para premissas dos seus corollarios anti-liberaes, artificio com que lisongeava as paix?es do seu illustre amo e patrono, e mantinha n'elle o fogo sagrado.
O padre achava-se bem n'aquella vida monotona, que exercia sobre si os mais notaveis effeitos analepticos. Podia dizer-se que elle dividia alli o tempo entre duas occupa??es exclusivas: comer e esperar com impaciencia as horas da comida.
Uma unica circumstancia assombrava os dias do padre. Era a presen?a na Casa Mourisca do hortel?o, em quem fallamos, e que mantinha com elle uma aberta hostilidade. Frei Januario exasperava-se sempre que o ouvia fallar no Imperador e no Cerco e nos Voluntarios da Rainha e na Carta, com o enthusiasmo e a emphase de um soldado d'aquelles tempos. Por vezes rompiam ambos em scenas violentas; por vezes o capell?o ia aconselhar ao fidalgo a demiss?o d'aquelle homem, que amea?ava infectar de liberalismo a familia inteira.
D. Luiz porém, apesar de nunca fallar com o hortel?o, n?o attendia n'estas reclama??es o padre. Conservando no seu servi?o o veterano, satisfazia a um pedido da esposa, e n?o teria coragem para fazer o contrario. Assim perpetuavam-se os conflictos entre os dois, porque nem o procurador supportava as rudes franquezas do soldado, nem este os remoques encapotados do procurador.
Tal era a situa??o da familia da Casa Mourisca na época em que vae procural-a a nossa narra??o.
Já se vê qu?o mal assegurado andava o futuro dos dois jovens filhos de D. Luiz. A educa??o que elles haviam recebido n?o tendêra a fim algum prático.
D. Luiz n?o podia soffrer a ideia de dar a seus filhos uma profiss?o. A nobre carreira das armas, que mais lhes conviria, estava-lhes fechada pelas ultimas evolu??es politicas. Os descendentes dos ultra-monarchicos Negr?es de Villar de Corvos n?o eram para se assalariarem em defeza dos principios e das institui??es que abalaram os velhos thronos, firmados no direito divino. Nobre era tambem a carreira ecclesiastica, que muitos dos seus antepassados haviam trilhado, apoiados no baculo episcopal; mas se D. Luiz estava persuadido de que já n?o havia religi?o n'este territorio de antigos crentes? e se frei Januario teimava, ensinado pelo mallogro de longas preten??es ás honras de umas meias vermelhas, que só se adiantava nas phalanges do clero quem fosse pedreiro livre!
Assim pois os jovens descendentes do velho realista passavam o tempo cavalgando e ca?ando nas immedia??es, e fruindo em sancto ocio uma vida, cujos espinhos todos procuravam occultar-lhes. Caminhavam por estrada de rosas para um fundo precipicio, d'onde lhes desviavam as vistas.
Deve porém dizer-se que n?o caminhavam ambos igualmente desprevenidos; porque de crian?a era diverso o caracter dos dois, e de dia para dia mais a differen?a se pronunciava.
Jorge, na infancia como na juventude, f?ra sempre grave e reflectido. Nos brinquedos tomava para si o desempenho de um papel serio. Era o pae, o mestre, o commandante, o medico, o padre, tudo aquillo que o obrigasse a um porte sisudo e a uma gravidade de homem. Adolescente, nunca as raparigas do logar lhe ouviram uma phrase atrevida; era sempre uma sauda??o affectuosa, casta e quasi paternal a que lhes dirigia, ainda quando as encontrasse a sós nas veredas mais solitarias das devezas ou pinheiraes. Ellas habituaram-se áquella juvenil seriedade, saudavam-n'o como a um velho, fallavam d'elle com acatamento, certas de encontrarem n'aquelle silencioso rapaz um protector na occasi?o precisa, mas nunca um namorado. E comtudo a figura esbelta de Jorge, a varonil e intelligente express?o d'aquelle rosto bem desenhado e um certo fulgor no olhar, que denunciava energia de caracter, obrigavam a desviar-se para o vêr mais de um olhar feminino, quando elle passava com um livro debaixo do bra?o ou a cavallo pelos caminhos do campo.
As pessoas da indole de Jorge impoem uma especie de estranho temor ás mulheres, que se afastam d'ellas como de um ser mysterioso, d'onde lhes podem vir perigos desconhecidos.
Mauricio, pelo contrario, mal podia dizer de que idade encetára o seu primeiro amor. Com os brinquedos pueris misturára já uns arremedos de galanteio e mais o competente cortejo de arrufos e de ciumes. Desde ent?o nunca lhe andou o cora??o devoluto, ainda que tambem nunca t?o tomado e absorvido
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