Os fidalgos da Casa Mourisca | Page 8

Júlio Dinis
aldeia o scenario bem está, pouco tem que se lhe diga; mas os
actores e a comedia que aqui se representa é que são de uma insipidez!
Os instinctos urbanos de Mauricio, cuja indole mal se accommodava á
simplicidade campesina, e o fazia suspirar pela vida das capitaes,
arrancavam-lhe frequentemente d'estas exclamações.

Jorge, que escutára o irmão sob uma meia distracção e sem desviar os
olhos da Herdade, replicou-lhe sorrindo:
--Ha quasi uma hora que estou aqui, e posso jurar-te que não tinha
notado uma só d'essas particularidades da paisagem que descreves.
--Gostas mais da contemplação em globo. Até isso é de poeta. Analysar
minuciosamente as impressões recebidas não é o seu forte.
--Enganas-te ainda; não era tambem o conjuncto da paisagem que eu
observava; mas um ponto limitado d'ella, muito limitado.
--Qual era então?
--Olha alli para baixo; a Herdade de Thomé, aquella azafama, aquella
gente toda a trabalhar, a vida que alli vae!
--Ora adeus!--exclamou Mauricio--é justamente o que me não roubaria
um momento de attenção. Não te estou a dizer que para mim o que ha
de insupportavel no campo é a gente que o habita, a vida que n'elle se
passa? Faz pena vêr que especie de contempladores tem a natureza para
estas maravilhas. A indifferença com que estes selvagens encaram tudo
isto! Repara, vê aquelle labrego passar lá em baixo na ponte; olha lá se
elle desvia a cabeça para algum dos lados, ou se pára um momento para
gozar do bello espectaculo que d'alli observa. Olha para aquillo!
Selvagem! Pergunta ao Thomé ou a toda essa gente que lá anda em
baixo a trabalhar quantas vezes admiraram as bellezas de uma noite de
luar, vista do alto do oiteiro pequeno, ou se o pôr do sol lhes produz
alguma sensação na alma, a não ser a lembrança de que vão sendo
horas da ceia.
Jorge sorria ao ouvir o irmão, e tornou placidamente:
--Que homem este! A poesia precisa de ter quem a entenda e quem a
faça; e olha que nem sempre os que a entendem a fazem, nem os que a
fazem a entendem. Esta pobre gente do campo é uma parte integrante
d'elle; não o contemplam, completam-n'o. Que querias tu? Gostavas
talvez mais de que em vez d'essa gente indifferente, que trabalha,

estivessem por ahi os montes, os valles e as ribeiras povoados de poetas
contempladores como tu? Deves confessar que seria um campo bem
ridiculo esse. Se eu até, para que te diga a verdade, estou persuadido de
que não encontraria encantos nos logares muito visitados, que ha por as
quatro partes do mundo, onde, a cada momento, apreciadores inglezes,
francezes, russos e allemães passeiam, soltando exclamações polyglotas,
e onde o nosso enthusiasmo nos é prescripto a paginas tantas do GUIA
DO VIAJANTE. O que torna os lavradores poeticos é a inconsciencia
com que elles o são.
--Vistos de longe. Pelo menos concorda n'isto; vistos de longe, e de
muito longe.
--Vistos de longe, sim, que duvida? como tudo o mais. Ao perto
tambem muitos d'esses prados são pantanos mal cheirosos, que
infectam, e mexe-se uma miryada de insectos repugnantes n'essa
verdura que tanto admiras. Dize-me uma coisa, Mauricio, parece-te que
o nosso velho solar prejudica a belleza d'esta paisagem?
--Se prejudica? Ora essa! Adorna-a. Olha que bem que elle sahe
d'aquelle fundo que lhe fazem os castanheiros!
--Muito bem, e comtudo, visto de perto, ha lá tristes e prosaicas
realidades--observou Jorge, suspirando.
Ao olhar de estranheza, com que, ao ouvir-lhe estas palavras, o irmão o
fitou, Jorge correspondeu, dizendo:
--Sim, Mauricio, triste e prosaica realidade para quem o olhar de perto.
Ha nada mais triste do que aquelles campos invadidos pelas ortigas,
que nós lá temos, do que aquelles pomares mal tractados, e aquelles
celleiros em ruinas? Quererás encontrar poesia na nossa pobreza,
Mauricio?
--Pobreza?!
--Pobreza, sim; pois que nome lhe queres dar? Olha, compara o aspecto
d'essa casa branca de um andar, que ahi fica em baixo, com o do nosso

paço acastellado, a actividade d'aquelles homens com a somnolencia
chronica do nosso capellão; compara ainda, Mauricio, compara a
desafogada alegria de Thomé com a tristeza sem conforto do nosso pae.
Mauricio curvou a cabeça, e uma como sombra de tristeza parou-lhe
algum tempo na fronte, habitualmente desanuviada. Dir-se-ia que pela
primeira vez o vulto descarnado da realidade se lhe apresentava aos
olhos, até então fascinados pelo fulgor de lisongeiras illusões.
Mas, depois de breves instantes de silencio, respondeu ao irmão:
--Pois bem, será como dizes. Creio até que seja essa a verdade. A
riqueza está alli, a pobreza do nosso lado; porém a poesia... oh! essa
deixa-nol-a ficar, que bem sabes que não é ella a habitual companheira
da opulencia.
--Da opulencia ociosa, egoista e inutil, de certo que não; mas da
opulencia activa, benefica, que semeia, que transmitte a
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