Os Pobres | Page 7

Raul Brandão
em vez da caveira, tem um globo d'oiro constelado. Tem o universo. é o monge futuro.
Seja elle o tipo a que se encaminhe, embora de longe, a nossa fé e a nossa arte. Resemos, vivificando e sublimando. Arte creadora, que seja p?o e seja luz.
Se nos acusarem de hipocritas, deixal-os accusar; mentem. E a mentira só aos mentirosos prejudica. Se nos amesquinharem a fama e cercearem a gloria, desviando de nós as multid?es, que n?o pensam e v?o para onde as levam, melhor. Os que nos querem, os que nos amam, os que nos entendem, ficar?o comnosco. Os outros, deixando-nos, prestam-nos favor. Lezam-nos sómente na vaidade, que é vicio ruim, grama que custa a deitar fóra. Portanto, melhor. E se nos insultarem e injuriarem, melhor. E se nos perseguirem, melhor. E se nos apedrejarem e ensanguentarem, melhor ainda, muito melhor. Quando a alma, ao termo de mil hesita??es e desenganos, cravou as raizes para sempre n'um ideal de amor e de verdade, pódem calcal-a e tortural-a, pódem-na ferir e ensanguentar, que quanto mais a calcam, mais ella penetra no ideal que busca, mais ella se entranha no seio ardente que deseja.
Seu amigo e camarada cordealissimo
1902.3
Guerra Junqueiro.

OS POBRES

I
O ENXURRO
Vem o inverno e os montes pedregosos, as arvores despidas, a natureza inteira envolve-se n'uma grande nuvem humida que tudo abafa e penetra. As coisas dil-as-hieis recolhidas e scismaticas.
é como um r?lo mysterioso e profundo que vem d'um mar desconhecido. E a chuva come?a. é um ruido d?ce o da chuva. Faz sonhar em tantas coisas idas e tristes! Primeiro a terra imbebe-se e incha. E, depois de cheia, a torrente jorra até polir as pedras: ara na terra, p?e raizes á mostra, arrasta n'alluvi?o o humus, as folhas seccas das arvores, os cadaveres dos bichos, os detrictos desagregados das rochas, que rola juntos, dispersa e reune, atira, entre a baba da agua, para um destino ignoto.
Assim a vida. é um rio de lagrimas, de brados, de mysterio. A onda turva p?e as mais fundas raizes á mostra, a torrente leva comsigo de rold?o a desgra?a e o riso; sem cessar carreia este terri?o humano para uma praia, onde as m?os esqualidas dos que soffreram encontram emfim a m?o que os ampara, onde os olhos dos pobres, que se fartaram de chorar, ficam attonitos diante da madrugada eterna, onde todo o sonho se converte em realidade...
* * * * *
Vêde... é noite. A ventania redobra e nas lufadas que passam viajam gritos, catastrophes, lamentos. Sou pobre e transido e nada sei da vida, mas sou um principe. De que terra? direis.--Do sonho. E assim n'este predio revolvido me quédo, sósinho e triste, a escutar... Ou?o um rio que os mais n?o sentem. Cada creatura nascida traz comsigo uma fonte, fio de agua humedecendo a frincha d'uma pedra ou levada impetuosa e aos jorros. é ella que tira á vida a sua seccura. Em certas creaturas pobres e simples quasi se ouve essa agua correr e t?o amoravelmente, que dá vontade de nos chegarmos á sua sombra. é emo??o. Minae, n?o na deixeis seccar: se finda torna-se a vida como os ch?os sequiosos.
N'este casar?o onde móro a toda a hora se ouve o ruido da levada; corre sempre como as torrentes desordenadas e esplendidas. Escutae!... Préga o inverno bravio, o vento e os aguaceiros passam, mas escutae, escutae!...
* * * * *
S?o meus visinhos, lá em baixo mulheres perdidas, ao pé de mim dois casados, e na trapeira um gato pingado, a quem chamam S. José. As mulheres passam ás vezes na rua, com chales purpuras a rasto; o gato pingado só sahe á noitinha, á hora dos morcegos. Mais timido que eu, encontro-o nas escadas a tossir, com o peito escalavrado e r?to.
Para que vive esta ralé? Levantam-se derreados, para cavar, para berrar, para que lhes deem um peda?o de p?o e só se deitam no sepulchro. Caminho sem sonho. Da vida coube-lhes este quinh?o amargo: o cansa?o, a humilha??o e a fome.
Se passam pelas arvores, n'um dia de primavera, t?o lindo, que até as proprias macieiras de commovidas se v?o desentranhando em flor, sabeis o que acontece? As arvores retrahem-se, as coisas callam-se ao vel-os passar cobertos de suor, calcados e gastos. Para que é que elles vivem aos gritos, offendidos, ralé, pedras, sapos? para que é que Deus os cria?
* * * * *
O gato pingado... Eil-o que sobe. Cada passo me lembra uma pázada de terra. é soturno este homem, esguio e magro, com o chapeu alto embrulhado no len?o do rapé e a casaca dobrada no bra?o. Nunca fala. Estou mesmo em dizer que n?o pensa, este avej?o que só sahe para os enterros. Deve ser máo, deve ser duro: nunca decerto chorou. Os garotos apedrejam-n'o quando elle passa pela rua, esguio, vesgo, de chapeu alto e casaca, rigido
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