Os Pobres | Page 5

Raul Brandão
infinito egoismo. é como se quizessemos resumir a infinidade dos numeros em um numero unico, infinito, eterno, inalteravel, o numero absoluto perfeito, e realizassemos a sinteze da infinidade numerica no absoluto do zero. Tudo egual a nada. N?o! Deus é infinito amor, esfor?o infinito, actividade infinita. O universo é o corpo de Deus, é a carne de Deus. Deus é absolutamente perfeito na diversidade infinita, porque sem essa diversidade infinita n?o ha, nem póde haver, a uni?o suprema. Mas a sinteze da vida é irrealisavel na ideia de numero e quantidade, na ideia concreta de materia. Só na ordem moral se unifica absolutamente a vida varia do universo. As quantidades, traduzidas em imperfei??es, os numeros traduzidos em egoismos, s?o reductiveis ao absoluto na ideia unica d'amor. Ahi o imperfeito torna-se a condi??o matematica do perfeito. Deus, amor absoluto, vive e sustenta se dos egoismos infinitos, continuamente evolucionando para elle. Deus, beatitude eterna, vive e sustenta-se das d?res infinitas do universo. Deus como corpo, como natureza, sofre infinitamente; mas Deus, espirito puro, Deus, amor absoluto, n?o sente d?r, nem sofrimento. é a bemaventuran?a e a gloria eterna, porque eternamente triunfa dos sofrimentos eternos do seu corpo. O santo verdadeiro dá-nos a imagem palida de Deus. Deus é o santo perfeito, o Christo absoluto e universal.?
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Adoramos, pois, o mesmo Deus, unificamos a vida na mesma sinteze. Mas o auctor dos Pobres n?o desvendou, ideologicamente, abstractamente, o segredo da natureza, a explica??o religiosa e intima da vida universal. N?o a estudou como filosofo, descarnando-a, dissecando-a, até lhe descobrir as leis inalteraveis e reconditas da sua estructura evolutiva. N?o fez do cerebro um instrumento de vis?o, agudo e claro, gelido e penetrante, com elle interrogando, dia a dia, no sorvedoiro cosmico, o borbulhar infinitiforme da existencia. N?o mediu a vida a compasso, n?o a formulou em theoremas ou equa??es. Viveu-a. O seu livro n?o é a historia dialetica da raz?o d'um homem, sistematisando e codificando a natureza. N?o é a historia d'um encefalo, desdobrada em ideias. é a historia d'um homem, a historia plena e formidavel d'um organismo inteiro,--da carne e dos ossos, do sangue e das lagrimas, das m?os que aben?oam e que destroem, dos olhos que choram e que fulminam, da boca que resa e que tritura, da alma do lobo, que vem de Satanaz, da alma do anjo que se encaminha para Deus. Sim, a historia universal d'um homem, gemida e rugida, furiosa e candida, n?o para que o mundo lha ou?a (ent?o seria hipocrita) mas para que Deus lha escute, na eternidade e no silencio. é a confiss?o clamorosa, satanica ou celeste, das energias infinitas, evolutivamente amalgamadas e condensadas no misterio pavido d'um homem. O abismo insondavel, retrahindo-se, cristalisou n'um ponto; e esse ponto, adquirindo voz, confessou o abismo, revelou o insondavel. Almas inumeras se agrupam na alma sintetica e central. Ha em cada alma infinidades d'almas. E umas t?o horriveis e loucas, que as escondemos para que as n?o vejam, e outras t?o inconscientes e profundas, que, habitando comnosco, as n?o chegamos sequer a conhecer. O poeta dos Pobres conheceu-as e confessou-as todas. Desde a mais clara á mais crepuscular e tenebrosa, irradiou-as todas plenamente, no estado nascente, ingenuas e vivas, sem occultar uma unica.
O seu Deus n?o é o ultimo termo d'uma cadeia logica de silogismos. N?o o descobre pela raz?o, atinge-o pela emo??o. O meu amigo n?o raciocina, isoladamente, com o encefalo. Raciocina de chofre e com todo o corpo. As ideias brotam-lhe espontaneas, como o sangue da facada ou a flor da haste. Palpitam de vida, mas vida viva,--no estado genesico. N?o falam, n?o discursam, n?o discorrem. Gritam, uivam, ululam, gemem, resam, blasfemam. Ciclones d'ais, de ora??es, de impreca??es, de furias, de lamentos. O meu amigo pensa, forma juizos, como as eletricidades formam raios.
O seu Deus é a express?o da sua emotividade. Ou, bem no fundo, da sua moralidade. Só crê em Deus, só descobre Deus, quando em si, pela virtude, momentaneamente o realisa, ou tenta realisar. Se a bondade e a paz lhe existem no cora??o, a natureza resolve se-lhe em Deus, em amor supremo. Mas, d'ahi a instantes, o egoismo invade-o, e n?o é já em Deus, é na chimica, que a explica??o do mundo lhe apparece. Qual a fonte do ser, a ras?o da vida? é o acaso, é o apetite, é o amor, é Deus ou Satanaz, conforme as horas ou os dias conforme o equilibrio instavel da sua carne e do seu espirito. Logo de come?o, a paginas 29 e 30, define Deus abrazadoramente n'uma lingua de chamas, n'um paroxismo de dor e de misericordia, n'um extase candente e lagrimoso, t?o fervido e t?o lucido, que arrebata e deslumbra. Fulgiu-lhe subito, no amago da alma, a verdade da vida. A vida é um calvario. Sóbe-se ao amor
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