Os Pobres | Page 8

Raul Brandão
apedrejam-no quando ele passa pela rua, esguio, vesgo, de chapéu alto e casaca, rígido clown da morte, que em lugar de gargalhadas toda a sua vida ouvisse lágrimas. Aposto que, quando arrancam das casas os caix?es como quem arranca o cora??o dos vivos, ao ouvir gritos, tem um riso interior, júbilo de quem está farto de viver só, arredado, humilhado... Gato-pingado! Gato-pingado! Vive de lágrimas, sustenta-se de dores. E quando vai, de tocha acesa, esguio, a galgar atrás dum carro funerário, na reles mascarada, em que irá ele a pensar, esbaforido e triste?...
* * * * *
Outros... Casaram há muito. Chamam-lhe a Rata. Pobre e sem m?e atiraram-na um dia para um colégio de órf?os, onde cresceu entre maus tratos. Riam-se dela. Era um aborto que crescia por caridade. Passava a vida na enfermaria e os médicos--acho que de propósito--livraram-na da morte, para que depois sofresse.
Encontro-a nas escadas, com as botas do homem, os cotovelos rotos, e magra e desleixada que faz piedade.
--O melhor tempo que eu vivi foi o da enfermaria. Havia lá uma Irm? que me beijava e fazia festas...
Mais felizes s?o os c?es vadios, mais felizes, incomparavelmente, s?o as árvores.
O homem desanca-a. Chega a casa e bate-lhe, faz-lhe tratos. Se ela chora e se queixa desanca-a mais. E agora, como ela n?o dá palavra e só pensa:--Antes eu fosse para criada de servir!--ele quer que a Rata grite e chore.
Antes tu fosses para mulher da vida, digo-to eu!...
Esta manh? apareceu com os olhos inchados e pisaduras na cara. O vestido já lhe n?o serve. E como está frio, reparei, traz os pés metidos nos sapat?es do marido, sem meias e roxos. Aprende na vida, sofre! Nada te valerá. Até à morte, até que te acabe de matar com maus tratos. às vezes, se ele sai, p?e-se à janela, a cismar na Irm?, que, quando caía doente, lhe dava beijos, lhe fazia festas--e pergunta-se:
--Porque n?o morri ent?o?....
Cala-te e sofre. E até à morte, até o teu pobre corpo cair exausto, moído, negro de pancadas. Assim será irremediavelmente, inexoravelmente.
* * * * *
Este velho que pára nos patamares das escadas, gordo e mole, de cabelos brancos estacados, é o Gebo. Todo curvo, olha-vos com um olhar aguado e tonto.
--ó Gebo!
E ele, erguendo o car?o aflito:
--Anh?...
* * * * *
E como este, outros assim. A toda a hora vai o enxurro humano polindo as pedras. A ventania a?outa o casar?o e passa, levando poeira de cisma, ais, para outro mundo ignoto. Com a noite a vida redobra. Eis uma multid?o feita de terri?o, de criaturas tendo arrancado a máscara: certos homens s?o sonhos, outros di-los-íeis gritos. P?e-se o Gebo a contar a sua história, surge o Corsário, uma velha trágica, com o caio dos palha?os, o Astrónomo, um sábio hirsuto, o Gabiru, filósofo esguio e hirto como uma tábua, que tem descoberto mundos e ignora as coisas mais simples desta vida. Remexe num brasido de ideias e nunca olhou cara a cara a existência. Anda atónito na rua, perdido num mundo que descobriu à proa do seu barco como um navegador. No subterraneo do prédio mora--há quantos anos?--o homem do pacho, de quem ninguém sabe a história. Emparedou-se. Odeia a luz: essa poeira azul, que embebe os seres e as coisas, Mar?o, a árvore, a vida tumultuária e larga como um rio, nunca mais a viu. Está vivo num túmulo: só as paredes esbraseadas, à for?a dele sonhar, a rubro como as pedras duma forja, conhecem a sua história. Pára no patamar o Gebo contando o que sofreu aos pobres que o querem ouvir. Muitos fazem roda e ele, pícaro, desata a chorar e narra peda?os duma triste existência de humilha??o e de esmola, sempre esbaforido e escorra?ado, a filha a sustentar, o desprezo do mundo, as suas correrias, desorientado e com lágrimas, atrás do p?o para os seus. E termina sempre:
--Tenho pena de ter sido honrado...
* * * * *
A ventania présaga aumenta, abalando o Prédio. De que é construída uma casa? De pedra. Todo o globo é revolvido para abrigar o homem. A árvore e a ossada da terra s?o arrancadas para o servirem. Juntem a isto gritos. De pedra, de árvores e de gritos fora construído o Prédio. Juntem a isto sonho, que transforma as coisas. Um gritava nos subterraneos, outro de tanto sonhar empoeirara de oiro o granito negro. De forma que toda a casa gasta, amolgada, revolvida, tinha tomado alguma fei??o daquelas existências. é a habita??o do Gebo, das prostitutas, do Gabiru, do Pita. Escancara-se o port?o, caiem-lhe os telhados, mas se, em cima, nas mansardas arrombadas dá de chapa o sol, acreditá-la-eis a cismar, a cantar. é efectivamente de pedra--e de sonho.
Chove, mas em torno a terra árida, n?o tem água nem plantas.
Só uma árvore cresce naquele solo infecundo. Sustenta-se de dor. As suas
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