Os Pobres | Page 6

Raul Brandão
alma, a verdade da vida. A vida é um calvário. Sobe-se ao amor pela dor, à reden??o pelo sofrimento. Cristo é um redentor humano, Deus o redentor universal. é o ser infinito, porque é o amor ilimitado. E a natureza tenebrosa, vista de Deus, divinizou-se por encanto. Guerras, lutas, crimes, catástrofes, desordens, evaporam-se e fundem-se em harmonia mágica e perfeita.
Mas logo adiante, a páginas 42, a natureza, divinizada, reverte e regressa à sua forma demoníaca, de matéria bruta.
?Ser só, sem amigos, sem apertos de m?o, sem conhecidos, ser só e livre, que sonho!?
Do altruísmo absoluto, do absoluto amor, que é Deus, retrogradou ao individualismo anarquista, ao egoísmo feroz, que é Satanás. Do pólo positivo saltou ao pólo negativo. Entre os dois pólos, entre o bem e o mal, entre Deus e o Diabo, vai oscilar e flutuar a sua alma, ora aproximando-se de um, ora aproximando-se do outro, ora imobilizando-se quase, pelo hausto indutivo das duas correntes antagónicas.
Tal um Cristo, penosa e religiosamente escalando o calvário, e que, a meio da encosta, varado de dor, esvaído o animo e evolada a fé, arrojasse a cruz dos ombros, exclamando num ímpeto: ?Basta! Se o caminho do céu é um martírio abrupto, uma inferneira íngreme, desisto do céu e volto para traz para o conchego do meu lar, para a ternura de minha m?e, para o afecto dos meus parentes e meus irm?os. Antes risonho e feliz, junto do meu pai humano, que é carpinteiro, a aplainarmos cruzes, do que, morto e crucificado, na glória infinita do meu divino Pai celestial!?
E assim blasfemando, retrocederia na encosta do sofrimento e da amargura, para já lá no fundo, voltar a subi-la novamente, a cruz nos ombros, com maior fé e maior ansia.
O seu poema é a história da escalada trágica do seu calvário. Mil vezes o meu amigo tomou nos ombros a cruz da dor e da paix?o, e outras tantas a deixou cair, exausto, com ais de desanimo, ou a sacudiu exasperado, cuspindo invectivas no lenho duro do resgate. Mas por fim, sangrando e chorando, galgou a montanha do erro e do sofrimento. Chegou a Deus, e em Deus ficaram imóveis e serenos os olhos tristes da sua alma. Polarizou-se em Deus, de vez e de vontade. Livre, enfim! Libertou-se.
N?o volte à servid?o, à escravatura negra e demoníaca. Mantendo-se liberto, a obra de hoje, patética, mas angustiosa e desigual, a obras futuras, vastas, claras e radiantes, servirá de entrada e de prefácio. A arte vale mais ou menos, segundo a por??o de amor que abrange e que revela. A arte soberana é a que conjuga a natureza toda,--homens e monstros, águas e árvores, pedras e nuvens, sóis e nebulosas, com o verbo infinito e perfeito, o único verbo criador, que é o verbo amar. O universo atómico, partículas inúmeras e vagabundas, fraterniza em Deus, unificado numa só alma e num só corpo.
Rezar o universo é polarizá-lo no infinito amor. Cantar n?o basta. Rezar é mais. Rezar é o superlativo divino de cantar. A ora??o é a can??o angelizada, a can??o chorada e de m?os postas. O universo absorve a, compreende-a. Ouve-a Deus, os homens escutam-na, e as ondas, as águas e os rochedos, vagamente a percebem, como um hálito amigo, uma carícia branda e luminosa. Reze todas as dores, pobrezas, misérias, lutos, sofrimentos. Reze o lodo e o sangue, o ninho, o covil, o hospital, o cárcere, a enxovia, a terra trágica, ulcerada de mortes, e a noite c?ncava e fúnebre, ulcerada de sóis e de nebulosas. Reze a dor, mas reze também a alegria, que é dor vencida e desbaratada pelo amor. Reze o triunfo do amor, a alegria ascendente da natureza, a marcha épica da vida pelo caminho eterno, que n?o tem fim. Reze chorando, mas lágrimas fecundas, que fa?am parir a terra, palpitar o seio e germinar a semente. Lágrimas de aurora, orvalho vivo e criador. Rezar e chorar, mas heroicamente, na ac??o e na luta, no mundo e para o mundo. Rezar, como Nuno Alvares, entre o fogo ardente da batalha. Enganam-se os que v?o para Deus, voltando as costas à natureza. Quem se quiser salvar, há de salvar os outros. Quem renegar a natureza, renega Deus. A ascese egoísta, eis o ateísmo verdadeiro. A imobilidade é sacrílega, a escurid?o é sacrílega, o silêncio é sacrílego. A vida é som, é luz, é movimento. A vida marcha por abismos, trágica e formidável, mas ruidosa e sinfónica, vestida de luz e de mil cores. Amortalhá-la de negro, arrancar-lhe a língua, para que n?o cante, e os olhos, para que n?o deslumbre e n?o dardeje, é como se lhe cravássemos no cora??o uma facada sinistra. O quietismo beato, apagando o universo, apaga Deus. Quietismo e niilismo,--dois zeros, dois sinónimos. O frade católico, na concha da m?o, exangue e paralítica, sustenta uma
Continue reading on your phone by scaning this QR Code

 / 58
Tip: The current page has been bookmarked automatically. If you wish to continue reading later, just open the Dertz Homepage, and click on the 'continue reading' link at the bottom of the page.