alma, a verdade da vida. A vida é um calvário. Sobe-se ao amor pela dor, à reden??o pelo sofrimento. Cristo é um redentor humano, Deus o redentor universal. é o ser infinito, porque é o amor ilimitado. E a natureza tenebrosa, vista de Deus, divinizou-se por encanto. Guerras, lutas, crimes, catástrofes, desordens, evaporam-se e fundem-se em harmonia mágica e perfeita.
Mas logo adiante, a páginas 42, a natureza, divinizada, reverte e regressa à sua forma demoníaca, de matéria bruta.
?Ser só, sem amigos, sem apertos de m?o, sem conhecidos, ser só e livre, que sonho!?
Do altruísmo absoluto, do absoluto amor, que é Deus, retrogradou ao individualismo anarquista, ao egoísmo feroz, que é Satanás. Do pólo positivo saltou ao pólo negativo. Entre os dois pólos, entre o bem e o mal, entre Deus e o Diabo, vai oscilar e flutuar a sua alma, ora aproximando-se de um, ora aproximando-se do outro, ora imobilizando-se quase, pelo hausto indutivo das duas correntes antagónicas.
Tal um Cristo, penosa e religiosamente escalando o calvário, e que, a meio da encosta, varado de dor, esvaído o animo e evolada a fé, arrojasse a cruz dos ombros, exclamando num ímpeto: ?Basta! Se o caminho do céu é um martírio abrupto, uma inferneira íngreme, desisto do céu e volto para traz para o conchego do meu lar, para a ternura de minha m?e, para o afecto dos meus parentes e meus irm?os. Antes risonho e feliz, junto do meu pai humano, que é carpinteiro, a aplainarmos cruzes, do que, morto e crucificado, na glória infinita do meu divino Pai celestial!?
E assim blasfemando, retrocederia na encosta do sofrimento e da amargura, para já lá no fundo, voltar a subi-la novamente, a cruz nos ombros, com maior fé e maior ansia.
O seu poema é a história da escalada trágica do seu calvário. Mil vezes o meu amigo tomou nos ombros a cruz da dor e da paix?o, e outras tantas a deixou cair, exausto, com ais de desanimo, ou a sacudiu exasperado, cuspindo invectivas no lenho duro do resgate. Mas por fim, sangrando e chorando, galgou a montanha do erro e do sofrimento. Chegou a Deus, e em Deus ficaram imóveis e serenos os olhos tristes da sua alma. Polarizou-se em Deus, de vez e de vontade. Livre, enfim! Libertou-se.
N?o volte à servid?o, à escravatura negra e demoníaca. Mantendo-se liberto, a obra de hoje, patética, mas angustiosa e desigual, a obras futuras, vastas, claras e radiantes, servirá de entrada e de prefácio. A arte vale mais ou menos, segundo a por??o de amor que abrange e que revela. A arte soberana é a que conjuga a natureza toda,--homens e monstros, águas e árvores, pedras e nuvens, sóis e nebulosas, com o verbo infinito e perfeito, o único verbo criador, que é o verbo amar. O universo atómico, partículas inúmeras e vagabundas, fraterniza em Deus, unificado numa só alma e num só corpo.
Rezar o universo é polarizá-lo no infinito amor. Cantar n?o basta. Rezar é mais. Rezar é o superlativo divino de cantar. A ora??o é a can??o angelizada, a can??o chorada e de m?os postas. O universo absorve a, compreende-a. Ouve-a Deus, os homens escutam-na, e as ondas, as águas e os rochedos, vagamente a percebem, como um hálito amigo, uma carícia branda e luminosa. Reze todas as dores, pobrezas, misérias, lutos, sofrimentos. Reze o lodo e o sangue, o ninho, o covil, o hospital, o cárcere, a enxovia, a terra trágica, ulcerada de mortes, e a noite c?ncava e fúnebre, ulcerada de sóis e de nebulosas. Reze a dor, mas reze também a alegria, que é dor vencida e desbaratada pelo amor. Reze o triunfo do amor, a alegria ascendente da natureza, a marcha épica da vida pelo caminho eterno, que n?o tem fim. Reze chorando, mas lágrimas fecundas, que fa?am parir a terra, palpitar o seio e germinar a semente. Lágrimas de aurora, orvalho vivo e criador. Rezar e chorar, mas heroicamente, na ac??o e na luta, no mundo e para o mundo. Rezar, como Nuno Alvares, entre o fogo ardente da batalha. Enganam-se os que v?o para Deus, voltando as costas à natureza. Quem se quiser salvar, há de salvar os outros. Quem renegar a natureza, renega Deus. A ascese egoísta, eis o ateísmo verdadeiro. A imobilidade é sacrílega, a escurid?o é sacrílega, o silêncio é sacrílego. A vida é som, é luz, é movimento. A vida marcha por abismos, trágica e formidável, mas ruidosa e sinfónica, vestida de luz e de mil cores. Amortalhá-la de negro, arrancar-lhe a língua, para que n?o cante, e os olhos, para que n?o deslumbre e n?o dardeje, é como se lhe cravássemos no cora??o uma facada sinistra. O quietismo beato, apagando o universo, apaga Deus. Quietismo e niilismo,--dois zeros, dois sinónimos. O frade católico, na concha da m?o, exangue e paralítica, sustenta uma
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