Os Pobres | Page 4

Raul Brandão
sagrados de tribula??es e de martírios. é um flos-sanctorum da miséria, a dor do enxurro canonizada e sublimada.
Mas se a lei da natureza é iníqua e feroz, visto os maus triunfarem e os bons sucumbirem, donde vem essa lei, quem a gerou, quem a imp?s ao universo? Quer a criasse, com o universo, uma vontade alheia, quer ela seja imanente ao universo infinito, é, nos dois casos, uma lei monstruosa, negadora da suprema ideia do espírito do homem, a ideia do bem e da justi?a. Contradi??o inexplicável: A natureza é iniquidade, porque a lei que a rege assegura o predomínio e a sobrevivência do mais forte. Mas quem me leva a dizer que a natureza é iníqua? O sentimento do bem e da justi?a, desenraizável do meu cora??o e do meu cérebro. Logo existe também na natureza, pois que eu sou natureza, a lei do amor e da justi?a, contraposta à lei da for?a e da violência. Se Cristo morreu na cruz, a natureza é o mal. Mas sendo a natureza o mal, como é que dela nasceu o mesmo Cristo, afirma??o de todo o bem?
A ideia do bem e da perfei??o, levada ao infinito, é a ideia de Deus. Mas como harmonizar o absoluto perfeito com a natureza imperfeita? Como fazer sair a diversidade da identidade, o complexo do simples, o mal do bem, o universo de Deus?
Chegamos à terceira e última fase do seu espírito: à fase religiosa, à emo??o divina.
A natureza desagregada em movimento, traduziu-se-lhe em dor e resolveu-se-lhe em amor. Movimento infinito, dor infinita, amor infinito, eis os três rostos da natureza no espelho cada vez mais profundo da sua consciência, nos olhos cada vez mais abertos da sua alma. O dinamismo atómico do universo reduziu-o,--pavorosa síntese!--à dor sem fim, à dor universal. Viver é sofrer, e tudo vive, tudo sofre. Vida infinita igual à dor eterna, eis a equa??o matemática da natureza. Pandiabolismo, satanás-universo. Um círculo infernal, hermeticamente inexorável. N?o há, pois, evasiva? Há. Desse inferno sobe uma escada de chamas tenebrosas, que vai ao purgatório, e do purgatório uma espiral de luz radiante, que nos leva ao céu. A dor, que se lhe afigurou a essência íntima da vida e sua única express?o, n?o era, ao cabo, o substrato último da natureza, o fundo irredutível do universo. A dor n?o era irredutível. A alma, vencendo-a, converteu-a em amor. N?o há beleza esplendente, que n?o fosse dor caliginosa. A flor é a dor da raiz, a lua a dor das estrelas, e a virtude ou o génio a dor ascendente do éter luminoso, cristalizando no homem, ao fim de um calvário inenarrável de milh?es e milh?es de séculos sem conta. A alma de Jesus proclama o triunfo da santidade sobre o crime, como o corpo de Vénus entoa a vitória da linha viva e musical sobre a linha inerte, a linha bruta e desarmónica. Beleza de essência ou beleza de aparência, virtude de Jesus ou formosura de Vénus, tem, ancestralmente, a iniciá-las o mesmo horror e a mesma imperfei??o. Do verbo odiar nasceu, evolutivamente, o verbo amar. Se o homem foi tigre, o beijo foi dentada. Toda a alegria vem do amor, e todo o amor do sofrimento. A alegria é o sofrimento amoroso, o sofrimento espiritualizado. Deus é, pois, o amor infinito, vencendo infinitamente a infinita dor. E, vencendo a infinita dor, ele é a infinita alegria, a paz absoluta, a glória eterna, a bem-aventuran?a ilimitada. Deus sustenta-se realmente, como diz o meu amigo, do sofrimento universal.
Nos meus Ensaios Espirituais, ainda inéditos, eu exprimo inúmeras vezes a mesma ideia. Quer ver? Destaco uma página:
?Só a dor infinita produz o amor absoluto. Deus, amor absoluto, sustenta-se do sofrimento do universo. é uma luz eterna, alimentada por um incêndio eterno. Deus, amor absoluto, projecta-se em dor infinita da natureza. Para ser a perfei??o absoluta, encarnou-se na imperfei??o ilimitada do universo. Deus n?o se compreende sem universo. O perfeito vive do imperfeito, como a chama vive do combustível. O mal é a condi??o do bem, o erro a condi??o da verdade, o crime a condi??o da virtude. O santo é santo, porque venceu o demónio. Sem o demónio, o santo n?o se compreende. Sem universo imperfeito n?o há Deus perfeito. Satanás é uma das faces de Deus. Mais ainda: Satanás é o corpo de Deus. Deus é Deus, isto é infinita perfei??o, infinito amor, porque vence eternamente infinitas imperfei??es e infinitas dores. Deus é a completa afirma??o do Bem, pela completa e continua vitória sobre o mal. No instante em que o mal acabasse, acabava Deus. Deus n?o é ideia, pensando-se infinitamente: é acto infinito, amor infinito, a realizar-se pela infinita vontade na dura??o infinita. Eliminando o imperfeito, o perfeito evapora-se. Destruindo o relativo, destruireis o absoluto: o absoluto que fica é o absoluto n?o-ser. O infinito
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