Os Pobres | Page 9

Raul Brandão
dos pobres. Se um raio de lua, escoado pelas nuvens, a toca--eis um phantasma d'arvore todo de p�� de luar.
Qu��do-me s��sinho nas noites estiradas, ouvindo este enxurro vivo. Muitas vezes s?o lagrimas que correm ou emo??o que brota com o ruido d'um fio de bica cheio de scintilla??es e rumores. O cahir de lagrimas �� sempre d'uma tristeza pacifica... Na noite negra o Hospital entaipa a cidade: arvores, n��ras humedecidas, donde sahe a frescura do ch?o, montes solitarios, parece que os prohibe aos desgra?ados: como um velho sumidouro espera, guarda, construido de pedra e n'um brazido por dentro, todos os que soffrem, santos, pobres, mulheres perdidas e heroes.
O Pitta, embrulhado no seu chale-manta, murmura ��s vezes ao contemplal-o:
--A misericordia humana constroe d'estes castellos, para que os ricos n?o assistam ao soffrimento dos pobres. E fal-os de pedra, de granito bem solido, para que se n?o ou?am os gritos c�� f��ra.

II
O GEBO
Heis de tel-o encontrado esse velho gordo, de cabellos brancos estacados e um ar d'afflic??o que faz riso e piedade. Tomba ��s vezes na rua, levanta se, e, todo enlameado, olha p'ra os lados e chora; depois caminha esbaforido. Parece que vae gritar, esse ser molle e gordo, de cabellos brancos estacados, e, de subito, baixinho, pede-vos esmola. Tem um riso de humilhado e o aspecto d'uma bola de sebo--de cabellos brancos estacados. �� o Gebo. �� um gebo por ser picaro e r?to e por a desgra?a o ter calcado aos p��s at�� o tornar ridiculo.
* * * * *
Triste existencia sem odio e sem gritos. A vida n?o n'a entendia e a cada empurr?o tinha um ar espantado e afflicto de quem n?o comprehende. Que mal fizera? que mal fizera? Pois a desgra?a faz rir? o soffrimento faz rir?
E em torno as boccas escancaravam-se, ao verem-n'o gordo, pedinch?o e desgra?ado.
As peores ruinas resumem-se n'esta secca phrase--ser infeliz. Ha seres que nascem com uma sina--amargar a vida. Tudo lhe corria t?rto, at�� as coisas mais banaes e mais reles, as coisas que para os outros nem mesmo existem, e elle punha-se a olhar para a desgra?a, atarantado e estupido. Que mal fizera para soffrer?
Alem de desgra?ado, este homem f?ra sempre picaro: assim no globo passam existencias ignoradas de soffrimento e de bondade, que n?o deixam o mais simples vestigio, como os veios d'agua escondidos e que no emtanto s?o a vida da terra.
Mesmo posto a chorar, a sua mascara, de cabellos brancos estacados, fazia rir.
Sempre a suar, quasi sem saber gritar nem saber queixar-se, o Gebo tinha um cora??o igneo. Era d'estas creaturas a quem um mont?o de desgra?as torna ainda mais ridiculas: a ruina, a quebra, a miseria, a fome. Enlameado pela vida f��ra, resignado e chor?o, elle ahi vae...
--�� Gebo!
E todos se riam ao vel-o chorar d'afflic??o. Diziam uns:--Que n?o fosse tolo!--E os pobres, a quem elle tanta vez valera, gostavam de o v��r calcado e humilde como a terra dos caminhos. Qual �� a raz?o porque a desgra?a alheia consola a nossa propria desgra?a, dizem-me?...
A tresuar, afflicto, depois de espesinhado, ainda esse s��r molle e gordo, aos quarenta annos, cria na existencia como as arvores e as crean?as cr��em.
Em que hora aziaga encontrou a m�� sorte que nunca mais o deixou? Ha creaturas em quem a desgra?a se escarrancha no cacha?o, e �� p'ra sempre! p'ra toda a vida! Nunca mais as larga. Viera a quebra, afflic??es sem conto, ainda mais negras que o cora??o dos outros. Enganavam-n'o, com a alegria de o verem rebaixado e perdido, empurr?o d'aqui, empurr?o d'acol��, aos tombos por esse mundo.
Era casado o Gebo e tinha esta felicidade: uma filha. Oh uma filha!... Uma filha sempre prende a existencia! uma filha pequenina sempre tem nas m?osinhas uma for?a!
Assim esse velho ridiculo e gordo tambem f?ra feliz outr'ora. Era d'estes lares apagados e sumidos, onde a vida corre com a monotonia d'uma fonte, sempre egual e prompta a apagar todas as boccas sequiosas. Uma casinha velha, um quintalorio com seis arvores, um fio rumoroso d'agua e as janellas abrindo para a sombra amiga das fructeiras. Alli era a felicidade. D?o-nos as arvores toda a sua sombra: nunca nos enganam.
* * * * *
Muito tempo mentira �� mulher, que ia vivendo illudida. Ria o Gebo em casa, com o cora??o torcido, para que ellas fossem felizes mais algumas horas--ultimas horas tiradas �� desgra?a. At�� que um dia succumbiu:
--Eu n?o te queria dizer... Mas �� mulher! �� mulher!...
--Que ��? que foi?
--Estamos perdidos, estamos perdidos...
--Perdidos?!
--Sim, estamos... E agora? agora? Ninguem me vale, ninguem se importa. Tenho pedido, tenho andado... e j�� n?o posso! Estamos perdidos, mulher!...
--Estamos perdidos?
--Sim...
--Tu �� que tens a culpa, n?o tens mesmo finura nenhuma. Riem-se de ti. Todos te enganam e ainda por cima se riem de ti. Anda, vae!... Tu que queres? Que ha-de ser de mim e da pequena? N��s
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