gato pingado... Eil-o que sobe. Cada passo me lembra uma pázada de
terra. É soturno este homem, esguio e magro, com o chapeu alto
embrulhado no lenço do rapé e a casaca dobrada no braço. Nunca fala.
Estou mesmo em dizer que não pensa, este avejão que só sahe para os
enterros. Deve ser máo, deve ser duro: nunca decerto chorou. Os
garotos apedrejam-n'o quando elle passa pela rua, esguio, vesgo, de
chapeu alto e casaca, rigido clown da morte, que em logar de
gargalhadas toda a sua vida ouvisse lagrimas. Aposto que, quando
arrancam das casas os caixões como quem arranca o coração dos vivos,
ao ouvir gritos, tem um riso interior, jubilo de quem está farto de viver
só, arredado, humilhado... Gato pingado! gato pingado! Vive de
lagrimas, sustenta-se de dôres. E quando vai, de tocha accesa, esguio, a
galgar atraz d'um carro funerario, na reles mascarada, em que irá elle a
pensar, esbaforido e triste?....
* * * * *
Outros... Casaram ha muito. Chamam-lhe a Rata. Pobre e sem mãe
atiraram-n'a um dia para um collegio d'orphãos, onde cresceu entre
maus tratos. Riam-se d'ella. Era um aborto que crescia por caridade.
Passava a vida na enfermaria e os medicos--acho que de
proposito--livraram-n'a da morte, para que depois soffresse.
Encontro-a nas escadas, com as botas do homem, os cotovellos rôtos, e
magra e desleixada que faz piedade.
--O melhor tempo que eu vivi foi o da enfermaria. Havia lá uma Irmã
que me beijava e fazia festas...
Mais felizes são os cães vadios, mais felizes, incomparavelmente, são
as arvores.
O homem desanca-a. Chega a casa e bate-lhe, faz-lhe tratos. Se ella
chora e se queixa desanca-a mais. E agora, como ella não dá palavra e
só pensa:--Antes eu fosse para creada de servir!--elle quer que a Rata
grite e chore.
Antes tu fosses para mulher da vida, digo-t'o eu!...
Esta manhã appareceu com os olhos inchados e pisaduras na cara. O
vestido já lhe não serve. E como está frio, reparei, traz os pés mettidos
nos sapatões do marido, sem meias e roxos. Aprende na vida, soffre!
Nada te valerá. Até á morte, até que te acabe de matar com maus tratos.
Ás vezes, se elle sahe, põe-se á janella, a scismar na Irmã, que, quando
cahia doente, lhe dava beijos, lhe fazia festas--e pergunta-se:
--Porque não morri então?....
Calla-te e soffre. E até á morte, até o teu pobre corpo cahir exhausto,
moido, negro de pancadas. Assim será irremediavelmente,
inexoravelmente.
* * * * *
Este velho que pára nos patamares das escadas, gordo e molle, de
cabellos brancos estacados, é o Gebo. Todo curvo, olha-vos com um
olhar aguado e tonto.
--Ó Gebo!
E elle, erguendo o carão afflicto:
--Anh?...
* * * * *
E como este, outros assim. A toda a hora vae o enxurro humano
polindo as pedras. A ventania açouta o casarão e passa, levando poeira
de scisma, ais, para outro mundo ignoto. Com a noite a vida redobra.
Eis uma multidão feita de terriço, de creaturas tendo arrancado a
mascara: certos homens são sonhos, outros dil-os-hieis gritos. Põe-se o
Gebo a contar a sua historia, surge o Corsario, uma velha tragica, com
o caio dos palhaços, o Astronomo, um sabio hirsuto, o Gabirú,
philosopho esguio e hirto como uma taboa, que tem descoberto mundos
e ignora as coisas mais simples d'esta vida. Remexe n'um brazido de
idéas e nunca olhou cara a cara a existencia. Anda attonito na rua,
perdido n'um mundo que descobriu á prôa do seu barco como um
navegador. No subterraneo do predio mora--ha quantos annos?--o
homem do pacho, de quem ninguem sabe a historia. Emparedou-se.
Odeia a luz: essa poeira azul, que imbebe os seres e as coisas, março, a
arvore, a vida tumultuaria e larga como um rio, nunca mais a viu. Está
vivo n'um tumulo: só as paredes esbrazeadas, á força d'elle sonhar, a
rubro como as pedras d'uma forja, conhecem a sua historia. Pára no
patamar o Gebo contando o que soffreu aos pobres que o querem ouvir.
Muitos fazem roda e elle, picaro, desata a chorar e narra pedaços d'uma
triste existencia de humilhação e de esmola, sempre esbaforido e
escorraçado, a filha a sustentar, o desprezo do mundo, as suas correrias,
desorientado e com lagrimas, atraz do pão para os seus. E termina
sempre:
--Tenho pena de ter sido honrado...
* * * * *
A ventania présaga augmenta, abalando o Predio. De que é construida
uma casa? De pedra. Todo o globo é revolvido para abrigar o homem.
A arvore e a ossada da terra são arrancadas para o servirem. Juntem a
isto gritos. De pedra, d'arvores e de gritos fôra construido o Predio.
Juntem a isto sonho, que transforma as coisas. Um gritava nos
subterraneos, outro de tanto sonhar empoeirára d'oiro
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