Os Pobres | Page 6

Raul Brandão
começo, a paginas 29 e 30,
define Deus abrazadoramente n'uma lingua de chamas, n'um paroxismo
de dor e de misericordia, n'um extase candente e lagrimoso, tão fervido
e tão lucido, que arrebata e deslumbra. Fulgiu-lhe subito, no amago da
alma, a verdade da vida. A vida é um calvario. Sóbe-se ao amor pela
dôr, á redempção pelo sofrimento. Christo é um redemptor humano,
Deus o redemptor universal. É o ser infinito, porque é o amor ilimitado.
E a natureza tenebrosa, vista de Deus, divinisou-se por encanto.
Guerras, lutas, crimes, catastrofes, desordens, evaporam se e fundem-se
em harmonia magica e perfeita.
Mas logo adiante, a paginas 42, a natureza, divinisada, reverte e
regressa á sua forma demoniaca, de materia bruta.
«Ser só, sem amigos, sem apertos de mão, sem conhecidos, ser só e
livre, que sonho!»
Do altruismo absoluto, do absoluto amor, que é Deus, retrogradou ao
individualismo anarquista, ao egoismo feroz, que é Satanaz. Do polo
positivo saltou ao polo negativo. Entre os dois polos, entre o bem e o
mal, entre Deus e o Diabo, vae oscilar e flutuar a sua alma, ora

aproximando-se de um, ora aproximando-se do outro, ora
imobilisando-se quasi, pelo hausto indutivo das duas correntes
antagonicas.
Tal um Christo, penosa e religiosamente escalando o calvario, e que, a
meio da encosta, varado de dôr, esvahido o animo e evolada a fé,
arrojasse a cruz dos hombros, exclamando n'um impeto: «Basta! Se o
caminho do céo é um martirio abrupto, uma inferneira ingreme, desisto
do céo e volto para traz para o conchego do meu lar, para a ternura de
minha mãe, para o afecto dos meus parentes e meus irmãos. Antes
risonho e feliz, junto do meu pae humano, que é carpinteiro, a
aplainarmos cruzes, do que, morto e crucificado, na gloria infinita do
meu divino Pae celestial!»
E assim blasfemando, retrocederia na encosta do sofrimento e da
amargura, para já lá no fundo, voltar a subil-a novamente, a cruz nos
hombros, com maior fé e maior ancia.
O seu poema é a historia da escalada tragica do seu calvario. Mil vezes
o meu amigo tomou nos hombros a cruz da dôr e da paixão, e outras
tantas a deixou cahir, exhausto, com ais de desanimo, ou a sacudiu
exasperado, cuspindo invectivas no lenho duro do resgate. Mas por fim,
sangrando e chorando, galgou a montanha do erro e do sofrimento.
Chegou a Deus, e em Deus ficaram imoveis e serenos os olhos tristes
da sua alma. Polarisou-se em Deus, de vez e de vontade. Livre, emfim!
Libertou-se.
Não volte á servidão, á escravatura negra e demoniaca. Mantendo-se
liberto, a obra d'hoje, patetica, mas angustiosa e desigual, a obras
futuras, vastas, claras e radiantes, servirá de entrada e de prefacio. A
arte vale mais ou menos, segundo a porção de amor que abrange e que
revela. A arte soberana é a que conjuga a natureza toda,--homens e
monstros, aguas e arvores, pedras e nuvens, soes e nebulosas, com o
verbo infinito e perfeito, o unico verbo creador, que é o verbo amar. O
universo atomico, particulas inumeras e vagabundas, fraternisa em
Deus, unificado n'uma só alma e n'um só corpo.
Resar o universo é polarisal-o no infinito amor. Cantar não basta. Resar

é mais. Resar é o superlativo divino de cantar. A oração é a canção
angelisada, a canção chorada e de mãos postas. O universo absorve a,
comprehende-a. Ouve-a Deus, os homens escutam-na, e as ondas, as
aguas e os rochedos, vagamente a percebem, como um halito amigo,
uma caricia branda e luminosa. Rese todas as dôres, pobresas, miserias,
lutos, soffrimentos. Rese o lodo e o sangue, o ninho, o covil, o hospital,
o carcere, a enxovia, a terra tragica, ulcerada de mortes, e a noite
concava e funebre, ulcerada de soes e de nebulosas. Rese a dôr, mas
rese tambem a alegria, que é dôr vencida e desbaratada pelo amor. Rese
o triunfo do amor, a alegria ascendente da natureza, a marcha épica da
vida pelo caminho eterno, que não tem fim. Rese chorando, mas
lagrimas fecundas, que façam parir a terra, palpitar o seio e germinar a
semente. Lagrimas d'aurora, orvalho vivo e creador. Resar e chorar,
mas heroicamente, na acção e na luta, no mundo e para o mundo. Resar,
como Nuno Alvares, entre o fogo ardente da batalha. Enganam-se os
que vão para Deus, voltando as costas á natureza. Quem se quizer
salvar, ha de salvar os outros. Quem renegar a natureza, renega Deus. A
ascese egoista, eis o atheismo verdadeiro. A imobilidade é sacrilega, a
escuridão é sacrilega, o silencio é sacrilego. A vida é som, é luz, é
movimento. A vida marcha por abismos, tragica e formidavel, mas
ruidosa e simfonica, vestida de luz e de mil côres. Amortalhal-a de
negro, arrancar-lhe a lingua, para que não cante, e os
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