e ar de cerimonia.» E as alfurjas, cadeias e prostibulos, onde se
amontoam, n'um horror tenebroso, os vicios alucinados e os crimes
exorbitantes, afiguram-se-lhe á imaginação misericordiosa como
templos de angustias, santuarios sagrados de tribulações e de martirios.
É um flos-sanctorum da miseria, a dor do enxurro canonisada e
sublimada.
Mas se a lei da natureza é iniqua e feroz, visto os maus triunfarem e os
bons sucumbirem, d'onde vem essa lei, quem a gerou, quem a impoz ao
universo? Quer a creasse, com o universo, uma vontade alheia, quer
ella seja imanente ao universo infinito, é, nos dois casos, uma lei
monstruosa, negadora da suprema ideia do espirito do homem, a ideia
do bem e da justiça. Contradição inexplicavel: A natureza é iniquidade,
porque a lei que a rege assegura o predominio e a sobrevivencia do
mais forte. Mas quem me leva a dizer que a natureza é iniqua? O
sentimento do bem e da justiça, desenraisavel do meu coração e do meu
cerebro. Logo existe tambem na natureza, pois que eu sou natureza, a
lei do amor e da justiça, contraposta á lei da força e da violencia. Se
Christo morreu na cruz, a natureza é o mal. Mas sendo a natureza o mal,
como é que d'ella nasceu o mesmo Christo, afirmação de todo o bem?
A ideia do bem e da perfeição, levada ao infinito, é a ideia de Deus.
Mas como hamornisar o absoluto perfeito com a natureza imperfeita?
Como fazer sahir a diversidade da identidade, o complexo do simples,
o mal do bem, o universo de Deus?
Chegamos á terceira e ultima fase do seu espirito: á fase religiosa, á
emoção divina.
A natureza desagregada em movimento, traduziu-se-lhe em dôr e
resolveu-se lhe em amor. Movimento infinito, dôr infinita, amor
infinito, eis os tres rostos da natureza no espelho cada vez mais
profundo da sua consciencia, nos olhos cada vez mais abertos da sua
alma. O dinamismo atomico do universo reduziu-o,--pavorosa
sinteze!--á dôr sem fim, á dôr universal. Viver é sofrer, e tudo vive,
tudo sofre. Vida infinita egual á dôr eterna, eis a equação matematica
da natureza. Pandiabolismo, satanaz-universo. Um circulo infernal,
hermeticamente inexoravel. Não ha, pois, evasiva? Ha. D'esse inferno
sobe uma escada de chamas tenebrosas, que vae ao purgatorio, e do
purgatorio uma espiral de luz radiante, que nos leva ao céo. A dôr, que
se lhe afigurou a essencia intima da vida e sua unica expressão, não era,
ao cabo, o substracto ultimo da natureza, o fundo irredutivel do
universo. A dôr não era irredutivel. A alma, vencendo-a, converteu-a
em amor. Não ha bellesa esplendente, que não fosse dôr caliginosa. A
flor é a dôr da raiz, a lua a dôr das estrellas, e a virtude ou o genio a dor
ascendente do ether luminoso, cristalisando no homem, ao fim de um
calvario inenarravel de milhões e milhões de seculos sem conta. A alma
de Jesus proclama o triunfo da santidade sobre o crime, como o corpo
de Venus entoa a victoria da linha viva e musical sobre a linha inerte, a
linha brúta e desharmonica. Bellesa de essencia ou bellesa de aparencia,
virtude de Jesus ou formosura de Venus, tem, ancestralmente, a
inicial-as o mesmo horror e a mesma imperfeição. Do verbo odiar
nasceu, evolutivamente, o verbo amar. Se o homem foi tigre, o beijo foi
dentada. Toda a alegria vem do amor, e todo o amor do sofrimento. A
alegria é o sofrimento amoroso, o sofrimento espiritualisado. Deus é,
pois, o amor infinito, vencendo infinitamente a infinita dôr. E,
vencendo a infinita dôr, elle é a infinita alegria, a paz absoluta, a gloria
eterna, a bemaventurança ilimitada. Deus sustenta-se realmente, como
diz o meu amigo, do sofrimento universal.
Nos meus Ensaios Espirituaes, ainda ineditos, eu exprimo inumeras
vezes a mesma ideia. Quer vêr? Destaco uma pagina:
«Só a dor infinita produz o amor absoluto. Deus, amor absoluto,
sustenta-se do sofrimento do universo. É uma luz eterna, alimentada
por um incendio eterno. Deus, amor absoluto, projeta-se em dôr infinita
da natureza. Para ser a perfeição absoluta, encarnou se na imperfeição
ilimitada do universo. Deus não se comprehende sem universo. O
perfeito vive do imperfeito, como a chama vive do combustivel. O mal
é a condição do bem, o erro a condição da verdade, o crime a condição
da virtude. O santo é santo, porque venceu o demonio. Sem o demonio,
o santo não se comprehende. Sem universo imperfeito não ha Deus
perfeito. Satanaz é uma das faces de Deus. Mais ainda: Satanaz é o
corpo de Deus. Deus é Deus, isto é infinita perfeição, infinito amor,
porque vence eternamente infinitas imperfeições e infinitas dôres. Deus
é a completa affirmação do Bem, pela completa e continua victoria
sobre o mal. No instante em que o mal acabasse, acabava Deus. Deus
não é
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