Os Pobres | Page 2

Raul Brandão

esplendor, pavor, deslumbramento! O homem vacila, desmaia, quer
equilibrar-se... mas onde, se não ha terra em que poise, nem muro a que
se encoste?! Tudo impalpavel, fugaz, incerto, ilusorio, ilimitado... tudo
vida, tudo sonho, tudo voragem... Se baixa os olhos do imenso ao grão
d'areia, o grão d'areia, infinitessimo, resolve-se-lhe em vidas infinitas.
Quer contemple o universo, quer examine um corpusculo, a alma
engolfa-se, estonteada, no mesmo abismo devorador e creador.
Abismo de aparencias ocultas, abismo de vozes que se não ouvem. A
natureza taciturna exprime-se magicamente, em linguas vagas,
silenciosas. E quando n'um pouco de cisco murmuram mais vontades
do que bocas humanas ha na terra, o que não dirá o coloquio
formidando de todas as vontades do universo! Tem cada organismo a
sua lingua peculiar. Os que vivem mais proximos entendem-se melhor.
O ar segreda á agua, a raiz ao lodo, a luz á folha, o polen ao ovario. Ha
fluidos que se casam, raizes que se querem bem. O oxigenio é intimo
do ferro, o azougue é intimo do ouro. Os orbes fraternisam, os metaes

amalgamam-se, e as electricidades sexuadas buscam-se avidamente,
para copular!
Materia infinita,--forças infinitas, infinitamente caminhando. E no
pelago vertiginoso da mobilidade universal é cada atomo invisivel um
desejo que nasce, um desejo que sente, um desejo que fala...
O lexicon sem principio nem fim, das vozes mudas do increado, das
linguas tacitas da natureza, alguem o ouviu que se recorde? Alguem: o
homem. O homem, crisalida do anjo, foi monstro e planta e verme e
rocha e onda; foi nebulosa, foi gaz impalpavel, foi ether invisivel.
Articulou todas as linguas, e d'ellas conserva, obscuramente, vagas
memorias dormitando. Por isso os poetas adivinham, e raros com a
intuição prodigiosa do meu amigo.
Abreviando: A sua alma, diante do universo, reagiu por tres formas ou
em tres fases emotivas. Estudei a primeira,--a emoção dinamica. O
mundo resolve se lhe n'um jogo de forças, n'um conflicto de vontades,
brigando, casando-se, transfigurando-se em aparencias rapidas,
ilusorias. Tudo se move, tudo quer e tudo vive.
Mas o que é a vida? Chega á segunda fase. Deslisa da emoção dinamica
á emoção moral. Depois de ver o mundo atravez dos sentidos, julga-o
atravez da rasão e da consciencia.
O que é a vida?
A vida é o mal. A expressão ultima da vida terrestre é a vida humana, e
a vida dos homens cifra-se n'uma batalha inexoravel de apetites, n'um
tumulto desordenado de egoismos, que se entrechocam, rasgam,
dilaceram. O Progresso, marca-o a distancia que vae do salto do tigre,
que é de dez metros, ao curso da bala, que é de vinte kilometros. A fera,
a dez passos, perturba-nos. O homem, a quatro leguas, enche-nos de
terror. O homem é a fera dilatada.
Nunca os abismos das ondas pariram monstro equivalente ao navio de
guerra, com as escamas d'aço, os intestinos de bronse, o olhar de
relampagos, e as bocas hiantes, pavorosas, rugindo metralha,

mastigando lavaredas, vomitando morte.
A pata prehistorica do atlantosauro esmagava o rochedo. As dinamites
do chimico estoiram montanhas, como nozes. Se a preza do mastodonte
escavacava um cedro, o canhão Krup rebenta baluartes e trincheiras.
Uma vibora envenena um homem, mas um homem, sosinho, arraza
uma capital.
Os grandes monstros não chegam verdadeiramente na epoca secundaria;
aparecem na ultima, com o homem. Ao pé d'um Napoleão um
megalosauro é uma formiga. Os lobos da velha Europa trucidam
algumas duzias de viandantes, emquanto milhões e milhões de
miseraveis cahem de fome e de abandono, sacrificados á soberba dos
principes, á mentira dos padres e á gula devoradora da burguezia
christã e democratica. O matadoiro é a formula crua da sociedade em
que vivemos. Uns nascem para rezes, outros para verdugos. Uns jantam,
outros são jantados. Ha creaturas lobregas, vestidas de trapos, minando
montes, e creaturas esplendidas, cobertas d'oiro e de veludo, radiando
ao sol. No cofre do banqueiro dormem pobresas metalisadas. Ha
homens que ceiam n'uma noite um bairro funebre de mendigos.
Enfeitam gargantas de cortesans rosarios d'esmeraldas e diamantes,
bem mais sinistros e lutuosos que rosarios de craneos ao peito de
selvagens.
Vivem quadrupedes em estrebarias de marmore, e agonisam parias em
alfurjas infectas, roidos de vermes. A latrina de Vanderbilt custou
aldeolas de miseraveis. E, visto os palacios devorarem pocilgas, todo o
boulevard grandioso reclama um quartel, um carcere e uma forca. O
deus milhão não digere sem a guilhotina de sentinella. Os homens
repartem o globo, como os abutres o carneiro. Maior abutre, maior
quinhão. Homens que têm imperios, e homens que não têm lar.
Os pés mimosos das princezas deslizam lusentes d'oiro por alfombras, e
os pés vagabundos calcam, sangrando, rochedos hirtos e matagaes.
Bebem champagne alguns cavalos do sport, usam anneis de brilhantes
alguns cães de regaço, e algumas creaturas, por falta d'uma codea,
acendem fogareiros para morrer. Bemdito o oxido de
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