Os Lusíadas | Page 9

Luís Vaz de Camões
forças muito excede
A Moçambique esta ilha, que se chama

Quíloa, mui conhecida pela fama.
100
Para lá se inclinava a leda frota;
Mas a Deusa em Citere
celebrada,
Vendo como deixava a certa rota
Por ir buscar a morte
não cuidada,
Não consente que em terra tão remota
Se perca a gente
dela tanto amada.
E com ventos contrários a desvia
Donde o piloto
falso a leva e guia.
101
Mas o malvado Mouro, não podendo
Tal determinação levar
avante,
Outra maldade iníqua cometendo,
Ainda em seu propósito
constante,
Lhe diz que, pois as águas discorrendo
Os levaram por
força por diante,
Que outra ilha tem perto, cuja gente
Eram Cristãos
com Mouros juntamente.
102
Também nestas palavras lhe mentia,
Como por regimento
enfim levava,
Que aqui gente de Cristo não havia,
Mas a que a
Mahamede celebrava.
O Capitão, que em tudo o Mouro cria,

Virando as velas, a ilha demandava;
Mas, não querendo a Deusa
guardadora,
Não entra pela barra, e surge fora.
103
Estava a ilha à terra tão chegada,
Que um estreito pequeno a
dividia;
Uma cidade nela situada,
Que na fronte do mar aparecia,

De nobres edifícios fabricada,
Como por fora ao longe descobria,

Regida por um Rei de antiga idade:
Mombaça é o nome da ilha e da
cidade.
104
E sendo a ela o Capitão chegado,
Estranhamente ledo, porque
espera
De poder ver o povo batizado,
Como o falso piloto lhe

dissera,
Eis vêm batéis da terra com recado
Do Rei, que já sabia a
gente que era:
Que Baco muito de antes o avisara,
Na forma doutro
Mouro, que tomara.
105
O recado que trazem é de amigos,
Mas debaixo o veneno vem
coberto;
Que os pensamentos eram de inimigos,
Segundo foi o
engano descoberto.
Ó grandes e gravíssimos perigos!
Ó caminho de
vida nunca certo:
Que aonde a gente põe sua esperança,
Tenha a
vida tão pouca segurança!
106
No mar tanta tormenta, e tanto dano,
Tantas vezes a morte
apercebida!
Na terra tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade
avorrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá
segura a curta vida,
Que não se arme, e se indigne o Céu sereno

Contra um bicho da terra tão pequeno?
Canto Segundo
1
Já neste tempo o lúcido Planeta,
Que as horas vai do dia
distinguindo,
Chegava à desejada e lenta meta,
A luz celeste às
gentes encobrindo,
E da casa marítima secreta
Lhe estava o Deus
Noturno a porta abrindo,
Quando as infidas gentes se chegaram
As
naus, que pouco havia que ancoraram.
2
Dentre eles um, que traz encomendado
O mortífero engano, assim
dizia:
"Capitão valeroso, que cortado
Tens de Neptuno o reino e
salsa via,
O Rei que manda esta ilha, alvoroçado
Da vinda tua, tem
tanta alegria,
Que não deseja mais que agasalhar-te,
Ver-te, e do
necessário reformar-te.
3
"E porque está em extremo desejoso
De te ver, como cousa
nomeada,

Te roga que, de nada receoso,
Entres a barra, tu com toda
armada:
E porque do caminho trabalhoso
Trarás a gente débil e
cansada,
Diz que na terra podes reformá-la,
Que a natureza obriga a
desejá-la.

4
"E se buscando vás mercadoria
Que produze o aurífero Levante,

Canela, cravo, ardente especiaria,
Ou droga salutífera e prestante;

Ou se queres luzente pedraria,
O rubi fino, o rígido diamante,

Daqui levarás tudo tão sobejo
Com que faças o fim a teu desejo."
5
Ao mensageiro o Capitão responde
As palavras do Rei
agradecendo:
E diz que, porque o Sol no mar se esconde,
Não entra
para dentro, obedecendo;
Porém que, como a luz mostrar por onde

Vá sem perigo a frota, não temendo,
Cumprirá sem receio seu
mandado,
Que a mais por tal senhor está obrigado.
6
Pergunta-lhe depois, se estão na terra
Cristãos, como o piloto lhe
dizia;
O mensageiro astuto, que não erra,
Lhe diz, que a mais da
gente em Cristo cria.
Desta sorte do peito lhe desterra
Toda a
suspeita e cauta fantasia;
Por onde o Capitão seguramente
Se fia da
infiel e falsa gente.
7
E de alguns que trazia condenados
Por culpas e por feitos
vergonhosos,
Por que pudessem ser aventurados
Em casos desta
sorte duvidosos,
Manda dous mais sagazes, ensaiados,
Por que
notem dos Mouros enganosos
A cidade e poder, e por que vejam
Os
Cristãos, que só tanto ver desejam.
8
E por estes ao Rei presentes manda,
Por que a boa vontade, que
mostrava,
Tenha firme, segura, limpa e branda;
A qual bem ao
contrário em tudo estava.
Já a companhia pérfida e nefanda
Das
naus se despedia e o mar cortava:
Foram com gestos ledos e fingidos,

Os dous da frota em terra recebidos.
9

E depois que ao Rei apresentaram,
Co'o recado, os presentes que
traziam,
A cidade correram, e notaram
Muito menos daquilo que
queriam;
Que os Mouros cautelosos se guardaras
De lhes
mostrarem tudo o que pediam:
Que onde reina a malícia, está o receio,

Que a faz imaginar no peito alheio.

10
Mas aquele que sempre a mocidade
Tem no rosto perpétua, e foi
nascido
De duas mães, que urdia a falsidade
Por ver o navegante
destruído,
Estava numa casa da cidade,
Com rosto humano e hábito
fingido,
Mostrando-se Cristão, e fabricava
Um altar sumptuoso, que
adorava.
11
Ali tinha em retrato afigurada
Do alto e Santo Espírito a pintura:

A cândida pombinha debuxada
Sobre a única Fénix, Virgem pura;

A companhia santa está pintada
Dos doze, tão torvados na figura,

Como os que, só das línguas que caíram,
De fogo, várias línguas
referiram.
12
Aqui os dous companheiros conduzidos
Onde com este engano
Baco estava,
Põem em terra os giolhos, e os sentidos
Naquele Deus
que o mundo governava.
Os cheiros excelentes, produzidos
Na
Pancaia odorífera, queimava
O Tioneu,
Continue reading on your phone by scaning this QR Code

 / 63
Tip: The current page has been bookmarked automatically. If you wish to continue reading later, just open the Dertz Homepage, and click on the 'continue reading' link at the bottom of the page.