bico
negro das cabaças defumadas, com pontos a cordel em fendas, por onde
o leite gotejava, aos solavancos do pau posto ao hombro esquerdo.
Apregoavam rapa, vergando a grandes molhos, apressados pastores,
anciosos por se livrarem da carga, trazida desde noite do matto.
Chiavam carros n'uma orgulhosa competencia, irritando em furiosos
latidos os cães das quintas.
Soaram trindades em Santa Luzia, vibrou na alegria da madrugada esse
toque de sino, impregnado ao pôr do sol pela melancholia da tarde;
seguiu-se-lhe o repique annunciando festa; tocaram na Sé á missa das
almas.
Cessou o bater da roupa no lavadoiro da pia, persignaram-se
devotamente e benzeram-se de hombro a hombro a creada e a tia
Pulcheria.
Veiu de dentro benzendo-se tambem a tia Dorotheia, mais pesada, mais
gorda, encher a talha no perenne jorro d'agua gorgolejando no tanque,
onde os peixes vermelhos mostravam o amplo e fundo d'essa
abundancia de agua, trasbordando para a grande pia de lavar, dando
viço aos cravos, rosas, secias e perpetuas dos canteiros, á madresilva da
janella, á abobora do telhado do forno, ao pé de vinha nascido de
encontro á pedra do fundo, desenvolvendo-se em ramadas junto da
arquinha onde se espetava a bica de ferro.
Recolheu-se, para o não verem faltar á oração matinal e, assim de pé,
varejava-lhe o olhar o braço d'agua que dera o nome d'Angra á sua
cidade.
Mas não avistava esse navio todos os dias receiado, cujo tiro alarmante
vinha findar-lhe os devaneios.
Saíam á pesca barcos á vela, avivando o azul n'um recorte de garça;
vogavam outros em cadencia, como buzios deitando por banda as
curvas pernas a fugirem no calhau.
Latinos inclinados, bordejava um cahique por dobrar a ponta de Santo
Antonio e entrar no porto onde soprava o vento carpinteiro, lenhador de
navios, dos ilheus ao caes da Figueirinha.
Illuminava o nascer do sol a humida neblina, desenrolando altas
montanhas, picos azulados, sinuosidades como largas muralhas
flanqueadas por torres, das que vira em registos dos logares santos,
cidades, extensas bahias, arvoredos polvilhados d'oiro, reflexos da
Antillia submergida, que havia de irromper das ondas quando voltasse
el-rei D. Sebastião no cavallo branco; miragem da propria ilha, como a
que arrastára os descobridores a aproarem ao mysterio dos horizontes
sem fim, até ao desengano do gelo do Labrador e da Terra Nova, á
inextricavel vegetação de sargaços d'esse mar de inferno.
Tambem sentia a ancia do desconhecido, herdada dos primeiros
povoadores da ilha Terceira, base das arremettidas a esse mysterioso
oriente, que pretendiam tomar por occidente, dando por fim rumo a
Colombo; tambem queria saber o que haveria para álem da curva do
mar largo, essas terras onde tudo se decidia: a França, mãe da liberdade,
regressada ao antigo regimen, invadindo a Hespanha constitucional, o
que animara D. Miguel a derrubar na Villafrancada as instituições de
Vinte; a Hespanha, de Cadiz, a cujo exemplo estalára a revolução de 24
de agosto de 1820, tentando agora restabelecer a inquisição; a
Inglaterra, que apoiára a carta constitucional doada por D. Pedro, e
decerto auxiliaria a revolução de 18 de maio contra a usurpação de D.
Miguel, secundada na ilha em 22 de junho, ainda não havia um mez; o
Brasil de onde vinha dinheiro; Portugal para onde iam tributos; Lisboa,
de onde uma embarcação traria um primo para lhe arrebatar a mulher
amada, ou viria buscal-a e levar-lha.
Annullado na absorpção do mar largo e das terras aonde conduzia,
surgiu-lhe de repente, a pannos largos, guinando n'uma bordada, saindo
detraz do Monte Brasil, a fragata Princesa Real, mostrando no balanço
a bateria rasa, cintada de peças negras em carretas vermelhas abocadas
ás portinholas.
Colheu o velame dos tres mastros, soltou a ancora, e o golpe rapido da
antena, fazendo respingar a agua, foi o signal para o saltearem lanchas
e escaleres.
Tudo acabaria assim?
Sentia-se ligado áquelle navio, dependente da sua rota, do porto de
onde vinha, do ancoradouro para onde havia de largar, das cartas que
trazia no forte bojo, e espicaçava-o o impeto de sair d'essa dependencia,
á mercê do que vinha de fóra, elle como a terra; de reagir dentro do seu
meio, do seu circulo, dos seus desejos, das suas esperanças, por fórma a
terem que contar com elle.
Havia de ficar áquella mesma janella, vendo-o perder-se na bruma,
adivinhando, no palpitar de um lenço, a noiva perdida para sempre?
Voltou-se e olhou ao longo da grande bahia do Fanal, a oeste do Monte
Brasil, desde a encosta da serra de Santa Barbara, até ás recortadas
negruras de S. Matheus da Calheta, aonde a espuma arrebentava.
Sem uma incerteza, por entre a mancha escura dos pomares de S.
Carlos e do Pico da Urze; em meio do xadrez de cerrados amarellos de
trigo, verdes de milharaes, negros da ceifa; fitava o mirante da quinta
onde ella o vinha esperar,
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