deixou indicadas. Estes importantes estudos e a presença
do auctor na vereação do concelho, tambem se relacionam com os
factos politicos a que acima nos referimos. A medida administrativa
traduzida pelos decretos de 11 de setembro de 1852, que extinguiram o
termo de Lisboa e com elle constituiram os concelhos de Belem e dos
Olivaes, estava incluida no plano de reformas do ministerio de 23 de
maio de 1851; mas o ministerio seguinte não attendera n'estes diplomas
a todas as razões de justiça em que ella devia basear-se, succedendo
que os novos concelhos ficaram privados dos recursos a que tinham
natural direito e lhes eram imprescindiveis para prover á sua livre
administração e manter a sua independencia. Como as opiniões de A.
Herculano n'esta materia e a sua intervenção n'aquelle plano de
reformas eram conhecidas de muitas pessoas influentes do concelho de
Belem, d'ahi nasceu a idea de o investirem no encargo de vereador,
para que elle viesse reclamar contra a injustiça e aclarar o pensamento
originario da medida decretada. Accresce que em 1854 o ministerio
ainda era o mesmo que referendara aquelles decretos, e d'este modo se
explica a eleição do historiador e pelo theor das representações da
camara se ajuiza de toda a questão. Porém, não foi apenas para
satisfazer aquelles justificados designios dos seus constituintes que A.
Herculano acceitou o encargo popular para que fôra eleito. Uma
aspiração mais elevada, sobrelevando quaesquer intuitos politicos, o
guiou n'esse procedimento, aspiração que se revelou em todos os actos
da camara da sua presidencia, e accentuadamente se patenteia nos
estudos de que falamos: era crear no concelho de Belem uma norma de
administração local que, tornando-o florescente, podesse servir de
incentivo a outros concelhos: era tentar a propaganda do municipalismo
pelo exemplo, já que em 1851 lhe escapara o ensejo para fazer
revigorar em todo o paiz, a grande instituição que elle tanto encarecia e
que, segundo as suas profundas investigações historicas, foi n'outras
éras a base da nossa prosperidade e força politica.
Não é para este logar a narração de como a camara presidída por A.
Herculano veio a ser dissolvida pelo governo, não conseguindo o
historiador levar a cabo a sua nobre tentativa. Os esclarecimentos que
ficam expostos são bastantes para o fim a que se destinam.
1898.
Os editores.
DUAS EPOCHAS E DOUS MONUMENTOS OU A GRANJA REAL
DE MAFRA
1843
Houve entre nós um rei nascido com uma indole generosa e magnifica:
foi D. João V. Favoreceu a fortuna a grandiosidade do seu animo.
Durante o reinado d'este principe as entranhas da America pareciam
converter-se em ouro, e a terra brotar diamantes para enriquecerem o
thesouro portuguez, e o nosso primeiro rei do seculo XVIII pôde
emular Luiz XIV em fasto e magnificencia. Ha, porém, differenças
entre os dous monarchas: Luiz XIV, mais guerreador que guerreiro,
malbaratou o sangue de seus subditos em conquistas estereis; D. João V,
mais pacífico que timido, comprou sempre, sem olhar ao preço, a paz
externa dos seus naturaes. Luiz XIV levou a altissimo gráu d'esplendor
as letras e as sciencias: D. João V tentou-o; mas ficou muito áquem do
principe francez. Devemos todavia lembrar-nos de que Luiz XIV era
senhor de uma vasta monarchia, e D. João V rei de uma nação pequena.
Uma litteratura extensa e ao mesmo tempo vigorosa só apparece onde
ha muitos homens. É como a grande cultura, que só pode fazer-se em
opulentas propriedades e dilatados terrenos.
D. João V teve como Luiz XIV o seu Louvre; mas um Louvre em
harmonia com o caracter, não tanto religioso como beato e hypocrita,
do seu paiz n'aquella epocha. Mafra ficou duvidosa no desenho, entre o
mosteiro e o palacio. As duas entidades architectonicas
compenetram-se ahi d'um modo inextricavel. A púrpura está lá
remendada de burel; o burel alindado com púrpura, e o sceptro do rei
enlaça-se com a corda d'esparto, ao passo que a alpargata franciscana
ousa pisar os degráus do throno. Os que sabem quão corrompidos
foram os costumes em Portugal no princípio do seculo passado, e quão
esplendido e ostentoso foi o culto divino; quão brilhante foi a côrte
portugueza n'esse tempo, e por quão frouxas mãos andou o leme do
estado, não precisam vêr Mafra. Mafra é a imagem de tudo isso.
Um grande edificio, fosse qual fosse o destino que seu fundador lhe
quizesse dar, é sempre e de muitos modos um livro de historia. Os que
n'elle buscam só um typo por onde aferir o progresso ou decadencia das
artes na epocha da sua edificação, lêem apenas um capitulo d'esse livro.
Os castellos, os templos, e os palacios, triplice genero de monumentos
que encerra em si toda a architectura da Europa moderna, formam uma
chronica immensa, em que ha mais historia que nos escriptos dos
historiadores. Os architectos não suspeitavam que viria tempo
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