O Mandarim

José Maria Eça de Queiroz
O Mandarim, by Eça Queirós

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Title: O Mandarim
Author: Eça Queirós
Release Date: July 29, 2005 [EBook #16384]
Language: Portuguese
Character set encoding: ISO-8859-1
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MANDARIM ***

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EÇA DE QUEIROZ
O MANDARIM

LIVRARIA INTERNACIONAL
DE
ERNESTO CHARDRON, EDITOR.
Porto e Braga
1880

O MANDARIM

PROLOGO
1.° AMIGO (bebendo Cognac e soda, debaixo d'arvores, n'um terraço,
á beira d'agua)
Camarada, por estes calores do estio que embotam a ponta da
sagacidade, repousemos do aspero estudo da Realidade humana...
Partamos para os campos do Sonho, vaguear por essas azuladas collinas
romanticas onde se ergue a torre abandonada do Sobrenatural, e
musgos frescos recobrem as ruinas do Idealismo... Façamos
phantasia!...
2.° AMIGO
Mas sobriamente, camarada, parcamente!... E como nas sabias e
amaveis Allegorias da Renascença, misturando-lhe sempre uma
Moralidade discreta...
(COMEDIA INEDITA).

I
Eu chamo-me Theodoro--e fui amanuense do Ministerio do Reino.

N'esse tempo vivia eu á travessa da Conceição n.° 106, na casa
d'hospedes da D. Augusta, a esplendida D. Augusta, viuva do major
Marques. Tinha dois companheiros: o Cabrita, empregado na
Administração do bairro central, esguio e amarello como uma tocha
d'enterro; e o possante, o exuberante tenente Couceiro, grande tocador
de viola franceza.
A minha existencia era bem equilibrada e suave. Toda a semana, de
mangas de lustrina á carteira da minha repartição, ia lançando, n'uma
formosa letra cursiva, sobre o papel Tojal do Estado, estas phrases
faceis: «Ill.^mo e Exc.^mo Snr.--Tenho a honra de communicar a V.
Exc.ª... Tenho a honra de passar ás mãos de V. Exc.ª, Ill.^mo e Exc.^mo
Snr...»
Aos domingos repousava: installava-me então no canapé da sala de
jantar, de cachimbo nos dentes, e admirava a D. Augusta, que, em dias
de missa, costumava limpar com clara d'ovo a caspa do tenente
Couceiro. Esta hora, sobretudo no verão, era deliciosa: pelas janellas
meio cerradas penetrava o bafo da soalheira, algum repique distante dos
sinos da Conceição Nova, e o arrulhar das rolas na varanda; a
monotona susurração das moscas balançava-se sobre a velha cambraia,
antigo véo nupcial da Madame Marques, que cobria agora no aparador
os pratos de cerejas bicaes; pouco a pouco o tenente, envolvido n'um
lençol como um idolo no seu manto, ia adormecendo, sob a fricção
molle das carinhosas mãos da D. Augusta; e ella, arrebitando o dedo
minimo branquinho e papudo, sulcava-lhe as rêpas lustrosas com o
pentesinho dos bichos... Eu então, enternecido, dizia á deleitosa
senhora:
--Ai D. Augusta, que anjo que é!
Ella ria; chamava-me enguiço! Eu sorria, sem me escandalisar. Enguiço
era com effeito o nome que me davam na casa--por eu ser magro, entrar
sempre as portas com o pé direito, tremer de ratos, ter á cabeceira da
cama uma lithographia de Nossa Senhora das Dôres que pertencera á
mamã, e corcovar. Infelizmente corcóvo--do muito que verguei o
espinhaço, na Universidade, recuando como uma pêga assustada diante
dos senhores Lentes; na repartição, dobrando a fronte ao pó perante os

meus Directores Geraes. Esta attitude de resto convém ao bacharel; ella
mantem a disciplina n'um Estado bem organisado; e a mim garantia-me
a tranquillidade dos domingos, o uso d'alguma roupa branca, e vinte
mil reis mensaes.
Não posso negar, porém, que n'esse tempo eu era ambicioso--como o
reconheciam sagazmente a Madame Marques e o lepido Couceiro. Não
que me revolvesse o peito o appetite heroico de dirigir, do alto d'um
throno, vastos rebanhos humanos; não que a minha louca alma jámais
aspirasse a rodar pela Baixa em trem da Companhia, seguida d'um
correio choitando;--mas pungia-me o desejo de poder jantar no Hotel
Central com Champagne, apertar a mão mimosa de viscondessas, e,
pelo menos duas vezes por semana, adormecer, n'um extasi mudo,
sobre o seio fresco de Venus. Oh! moços que vos dirigieis vivamente a
S. Carlos, atabafados em paletots caros onde alvejava a gravata de
soirée! Oh! tipoias, apinhadas de andaluzas, batendo galhardamente
para os touros--quantas vezes me fizestes suspirar! Porque a certeza de
que os meus vinte mil reis por mez e o meu geito encolhido de enguiço
me excluiam para sempre d'essas alegrias sociaes vinha-me então ferir
o peito--como uma frecha que se crava n'um tronco, e fica muito tempo
vibrando!
Ainda assim, eu não me considerava sombriamente um «pária». A vida
humilde tem doçuras: é grato, n'uma manhã de sol alegre, com o
guardanapo ao pescoço, diante do bife de grelha, desdobrar o Diario
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