O Mandarim | Page 9

José Maria Eça de Queiroz
consagra??es augustas--a punhal como D. Jo?o II, á clavina como Carlos IX...
Tinha eliminado a creatura, de longe, com uma campainha. Era absurdo, phantastico, faceto. Mas n?o diminuia a tragica negrura do facto: eu assassinára um velho!
Pouco a pouco esta certeza ergueu-se, petrificou-se na minha alma, e como uma columna n'um descampado dominou toda a minha vida interior: de sorte que, por mais desviado caminho que tomassem os meus pensamentos viam sempre negrejar no horisonte aquella Memoria accusadora; por mais alto que se levantasse o v?o das minhas imagina??es, ellas terminavam por ir fatalmente ferir as azas n'esse Monumento de miseria moral.
Ah! por mais que se considere Vida e Morte como banaes transforma??es da Substancia, é pavoroso o pensamento--que se fez regelar um sangue quente, que se immobilisou um musculo vivo! Quando depois de jantar, sentindo ao lado o aroma do café, eu me estirava no sophá, enlanguecido, n'uma sensa??o de plenitude, elevava-se logo dentro em mim, melancolico como o c?ro que vem d'um ergastulo, todo um susurro de accusa??es:
--E todavia tu fizeste que esse bem-estar em que te regalas, nunca mais fosse gozado pelo veneravel Ti-Chin-Fú!...
Debalde eu replicava á Consciencia, lembrando-lhe a decrepitude do Mandarim, a sua g?ta incuravel... Facunda em argumentos, gulosa de controversia, ella retorquia logo com furor:
--Mas, ainda na sua actividade mais resumida, a vida é um bem supremo: porque o encanto d'ella reside no seu principio mesmo, e n?o na abundancia das suas manifesta??es!
Eu revoltava-me contra este pedantismo rhetorico de pedagogo rigido: erguia alto a fronte, gritava-lhe n'uma arrogancia desesperada:
--Pois bem! Matei-o! Melhor! Que queres tu? o teu grande nome de Consciencia n?o me assusta! és apenas uma pervers?o da sensibilidade nervosa. Posso eliminar-te com fl?r de laranja!
E immediatamente sentia passar-me n'alma, com uma lentid?o de briza, um rumor humilde de murmura??es ironicas:
--Bem, ent?o come, dorme, banha-te e ama...
Eu assim fazia. Mas logo, os proprios len?oes de Bretanha do meu leito tomavam aos meus olhos apavorados os tons lividos d'uma mortalha; a agua perfumada em que me mergulhava arrefecia-me sobre a pelle, com a sensa??o espessa d'um sangue que coalha: e os peitos nús das minhas amantes entristeciam-me, como lapides de marmore que encerram um corpo morto.
Depois assaltou-me uma amargura maior: comecei a pensar que Ti-Chin-Fú tinha de certo uma vasta familia, netos, bisnetos tenros, que, despojados da heran?a que eu comia á farta em pratos de Sèvres, n'uma pompa de sult?o perdulario, iam atravessando na China todos os infernos tradicionaes da miseria humana--os dias sem arroz, o corpo sem agasalho, a esmola recusada, a rua lamacenta por morada...
Comprehendi ent?o porque me perseguia a figura obesa do velho letrado; e dos seus labios recobertos pelos longos pellos brancos do seu bigode de sombra, parecia-me sahir agora esta accusa??o desolada:--?Eu n?o me lamento a mim, fórma meio morta que era; chóro os tristes que arruinaste, e que a estas horas, quando tu vens do seio fresco das tuas amorosas, gemem de fome, regelam na frialdade, apinhados n'um grupo expirante, entre leprosos e ladr?es, na Ponte dos Mendigos, ao pé dos terra?os do Templo do Céo!?
Oh tortura engenhosa! Tortura realmente chineza! N?o podia levar á bocca um peda?o de p?o sem imaginar immediatamente o bando faminto de criancinhas, a descendencia de Ti-Chin-Fú, penando, como passarinhos implumes que abrem debalde o bico e piam em ninho abandonado; se me abafava no meu paletot era logo a vis?o de desgra?adas senhoras, mimosas outr'ora de tepido conforto chinez, hoje r?xas de frio, sob andrajos de velhas sêdas, por uma manh? de neve; o tecto d'ébano do meu palacete lembrava-me a familia do Mandarim, dormindo á beira dos canaes, farejada pelos c?es; e o meu coupé bem forrado fazia-me arripiar á idéa das longas caminhadas errantes, por estradas encharcadas, sob um duro inverno asiatico.
O que eu soffria!--E era o tempo em que a popula?a invejosa vinha pasmar para o meu palacete, commentando as felicidades inaccessiveis que lá deviam habitar!
Emfim, reconhecendo que a Consciencia era dentro em mim como uma serpente irritada--decidi implorar o auxilio d'Aquelle que dizem ser superior á Consciencia porque disp?e da Gra?a.
Infelizmente eu n?o acreditava n'Elle... Recorri pois á minha antiga divindade particular, ao meu dilecto idolo, padroeira da minha familia, Nossa Senhora das D?res. E, regiamente pago, um povo de curas e conegos, pelas cathedraes de cidade e pelas capellas d'aldêa, foi pedindo a Nossa Senhora das D?res que voltasse os seus olhos piedosos para o meu mal interior... Mas nenhum allivio desceu d'esses céos inclementes, para onde ha milhares d'annos debalde sobe o clamor da miseria humana.
Ent?o eu proprio me abysmei em praticas piedosas--e Lisboa assistiu a este espectaculo extraordinario: um rica?o, um Nababo, prostrando-se humildemente ao pé dos altares, balbuciando de m?os postas phrases de Salvè-Rainha, como se visse na Ora??o e no Reino do Céo que ella conquista, outra cousa mais que uma consola??o ficticia
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