O Mandarim | Page 4

José Maria Eça de Queiroz
voz proseguiu, paciente e suave:
--Que me diz a cento e cinco, ou cento e seis mil contos? Bem sei, é uma bagatella... Mas emfim, constituem um come?o; s?o uma ligeira habilita??o para conquistar a felicidade. Agora pondere estes factos: o Mandarim, esse Mandarim do fundo da China, está decrepito e está gottoso: como homem, como funccionario do celeste imperio, é mais inutil em Pekin e na humanidade, que um seixo na bocca d'um c?o esfomeado. Mas a transforma??o da substancia existe: garanto-lh'a eu, que sei o segredo das coisas... Porque a terra é assim: recolhe aqui um homem apodrecido, e restitue-o além ao conjuncto das fórmas como vegetal vi?oso. Bem póde ser que elle, inutil como Mandarim no Imperio do Meio, vá ser util n'outra terra como rosa perfumada ou saboroso rep?lho. Matar, meu filho, é quasi sempre equilibrar as necessidades universaes. é eliminar aqui a excrescencia para ir além supprir a falta. Penetre-se d'estas solidas philosophias. Uma pobre costureira de Londres anceia por vêr florir, na sua trapeira, um vaso cheio de terra negra: uma fl?r consolaria aquella desherdada; mas na disposi??o dos sêres, infelizmente, n'esse momento, a substancia que lá devia ser rosa é aqui na Baixa homem d'Estado... Vem ent?o o fadista de navalha aberta, e fende o estadista; o enxurro leva-lhe os intestinos; enterram-no, com tipoias atraz; a materia come?a a desorganisar-se, mistura-se á vasta evolu??o dos atomos--e o superfluo homem de governo vai alegrar, sob a fórma de amor perfeito, a agua furtada da loura costureira. O assassino é um philanthropo! Deixe-me resumir, Theodoro: a morte d'esse velho Mandarim idiota traz-lhe á algibeira alguns milhares de contos. Póde desde esse momento dar pontapés nos poderes publicos: medite na intensidade d'este gozo! é desde logo citado nos jornaes: reveja-se n'esse maximo da gloria humana! E agora note: é só agarrar a campainha, e fazer ti-li-tin. Eu n?o sou um barbaro: comprehendo a repugnancia d'um gentleman em assassinar um contemporaneo: o espirrar do sangue suja vergonhosamente os punhos, e é repulsivo o agonisar d'um corpo humano. Mas aqui, nenhum d'esses espectaculos torpes... é como quem chama um criado... E s?o cento e cinco ou cento e seis mil contos; n?o me lembro, mas tenho-o nos meus apontamentos... O Theodoro n?o duvída de mim. Sou um cavalheiro:--provei-o, quando, fazendo a guerra a um tyranno na primeira insurrei??o da justi?a, me vi precipitado d'alturas que nem Vossa Senhoria concebe... Um trambulh?o consideravel, meu caro senhor! Grandes desgostos! O que me consola é que o OUTRO está tambem muito abalado: porque, meu amigo, quando um Jehovah tem apenas contra si um Satanaz, tira-se bem de difficuldades mandando carregar mais uma legi?o d'archanjos; mas quando o inimigo é o homem, armado d'uma penna de pato e d'um caderno de papel branco--está perdido... Emfim s?o seis mil contos. Vamos, Theodoro, ahi tem a campainha, seja um homem.
Eu sei o que deve a si mesmo um christ?o. Se este personagem me tivesse levado ao cume d'uma montanha na Palestina, por uma noite de lua cheia, e ahi, mostrando-me cidades, ra?as e imperios adormecidos, sombriamente me dissesse:--?Mata o Mandarim, e tudo o que vês em valle e collina será teu?,--eu saberia replicar-lhe, seguindo um exemplo illustre, e erguendo o dedo ás profundidades constelladas:--?O meu reino n?o é d'este mundo!? Eu conhe?o os meus authores. Mas eram cento e tantos mil contos, offerecidos á luz d'uma vela de stearina, na travessa da Concei??o, por um sujeito de chapéo alto, apoiado a um guarda-chuva...
Ent?o n?o hesitei. E, de m?o firme, repeniquei a campainha. Foi talvez uma illus?o; mas pareceu-me que um sino, de bocca t?o vasta como o mesmo céo, badalava na escurid?o, através do Universo, n'um tom temeroso que decerto foi acordar sóes que faziam né-né e planetas pan?udos resonando sobre os seus eixos...
O individuo levou um dedo á palpebra, e limpando a lagrima que ennevoára um instante o seu olho rutilante:
--Pobre Ti-Chin-Fú!...
--Morreu?
--Estava no seu jardim, socegado, armando, para o lan?ar ao ar, um papagaio de papel, no passatempo honesto d'um Mandarim retirado,--quando o surprehendeu este ti-li-tin da campainha. Agora jaz á beira d'um arroio cantante, todo vestido de sêda amarella, morto, de pan?a ao ar, sobre a relva verde: e nos bra?os frios tem o seu papagaio de papel, que parece t?o morto como elle. ámanh? s?o os funeraes. Que a sabedoria de Confucio, penetrando-o, ajude a bem emigrar a sua alma!
E o sujeito, erguendo-se, tirou respeitosamente o chapéo, sahiu, com o seu guarda-chuva debaixo do bra?o.
Ent?o, ao sentir bater a porta, afigurou-se-me que emergia d'um pesadêlo. Saltei ao corredor. Uma voz jovial fallava com a Madame Marques; e a cancella da escada cerrou-se subtilmente.
--Quem é que sahiu agora, ó D. Augusta?--perguntei, n'um suor.
--Foi o Cabritinha que vai um bocadinho á batota...
Voltei ao quarto: tudo lá repousava tranquillo, identico, real. O in-folio ainda estava
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