succedia que as cousas do campo, da vida pratica assimilavam a fecundante seiva artistica do poeta: e ent?o dos fructos alevantavam-se aromas que disputavam fóros de poesia aos aromas das fl?res. O mesmo sopro bondoso e potente agitava e fecundava os milharaes e as violetas e os trigaes e as rosas! A bondade summa está no poeta,--mais visivel, pelo menos, do que em Deus.
Artista--e de alta plana! Eu pude vêl-o cioso de seus direitos e reivindicando-os com tanto de ingenuidade quanto de vigor. E pois que um ligeiro esbo?o, precedendo mais detido trabalho, estou elaborando sobre os tra?os mais salientes d'aquella individualidade, n?o me dispensarei d'esta indicrip??o:
Ha dois mezes escrevia-me Cesario Verde: ?O Doutor Sousa Martins perguntou-me qual era a minha occupa??o habitual. Eu respondi-lhe naturalmente: Empregado no commercio. Depois, elle referiu-se á minha vida trabalhosa que me distrahia, etc. Ora, meu querido amigo, o que eu te pe?o é que, conversando com o dr. Sousa Martins, lhe dês a perceber que eu n?o sou o sr. Verde, empregado no commercio. Eu n?o posso bem explicar-te; mas a tua amizade comprehende os meus escrupulos: sim?...?
E eu fui á beira de Sousa Martins e perguntei-lhe se o poeta Cesario Verde podia ser salvo. O grande e illustre medico tranquilisou-me --e apunhalou-me em pleno peito:--Que o poeta Cesario Verde estava irremediavelmente perdido!
Meu poeta! Meu amigo! Tu estavas condemnado no tribunal superior, quando eu te mentia e ao publico e a mim proprio: estavas condemnado, meu santo! Mas podia viver tranquillo o teu orgulho de artista: o teu medico sabia que o poeta Cesario Verde eras tu proprio, meu pallido agonisante illudido!
A esthesia, o processo artistico e a individualidade d'este admiravel e originalissimo poeta merecem á Critica independente uma atten??o desvelada. Eu n?o hesito em vincular o meu nome á promessa de um tributo que a obra de Cesario Verde está reclamando.
E todavia, n?o póde o meu espirito evadir-se á idéa consoladora de que é um sonho isto que o entenebrece! N?o pódes evadir-te, ó meu espirito amargurado! mas eu vou libertar-te para a d?r!
Foi ás cinco da tarde--ainda agora. Caía o sol a prumo sobre a estrada do Lumiar e nós vinhamos arrastando a nossa miseria,--nós os vivos; o morto arrastava a sua indifferen?a. Chegámos, com duas horas de amargura, alli ao porto de abrigo e de descan?o. Veio o ceremonial tragico, o latim, o encerramento. Caso de uma eloquencia terrivel: Entre algumas dezenas de homens n?o houve uma phrase indifferente--e em dado momento explosiram solu?os n'um enternecimento que ageitava a loira cabe?a do cadaver lá dentro do caix?o--como as m?os da m?e lh'a ageitaram infantil, no travesseiro, ha vinte e quatro annos, e moribunda ha vinte e quatro horas!
Eram sete horas da tarde, ó minha alma triste! Eu fui-me a chorar velhas lagrimas de gelo, avocadas por lagrimas de fogo recemnascidas. Fui-me por entre os tumulos, a pedir ao meu Deus de ha trinta annos que que me désse for?a, que me désse for?a nova,--pois que se prolonga o captiveiro! E a sós, caminhando por entre os tumulos, ao cair da noite, pareceu-me comprehender que nós recebemos for?a nova em cada nova d?r, para soffrermos de novo--do mesmo modo que o alcatruz de uma nóra se despeja para encher-se, para despejar-se --sem saber porque...
20 de Agosto
A morada nova do Cesario é de pedra e tem uma porta de ferro, com um respiradouro em cruz;--rua n.o 6 do cemiterio dos Prazeres. á porta está um arbusto da familia dos cyprestes--um brinde ao meu querido morto. Eu offerecera uma palmeira que o vento esgar?ou ao terceiro dia, e tive de escolher uma especie resistente, cá da minha ra?a--funebre e resistente. Está verdejante e vigorosa a pequenina arvore, e de longe é uma sentinella perdida da minha doce amizade religiosa. De longe vou já perguntando á nossa arvore:--Está bom o nosso amigo?... E ella inclina os pequeninos trocos, com a gravidade do cypreste:--Bem; n?o houve novidade em toda a noite...
é que eu vou pelas tardes visital-o; e saber como elle passou é todo um meu cuidado, como é toda a minha alegria o bem-estar d'aquella hora em que n?o ha risos. N?o fomos risonhos--o Cesario e eu. As nossas horas de convivencia foram tristes e severas. Depois da morte do Cesario eu deixei de viver nos dominios onde elle sentira consola??es, alentos, esperan?as, onde elle imaginára renascimentos, horisontes, claridades novas. Nunca mais publiquei uma palavra que se lhe n?o consagrasse--ao meu querido morto. Em face d'aquelle cadaver eu senti alastrar-se no meu pobre ser fatigado o bem-amado desprezo da vida. O meu santo está alli,--está resignado: é tudo. Vós todos, que o amastes, sabei que elle está resignado--o nosso querido morto impassivel!
E n'uma dessas tardes, alguns dias depois da sua morte, eu aproximei da porta de ferro a minha pobre cabe?a esbrazeada e olhei
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