Lendas e Narrativas | Page 3

Alexandre Herculano
Era alli que, depois do vaguear incessante de muitos annos, elles vinham deitar-se mansamente uns ao p�� dos outros, para dormirem o longo somno sacudido sobre as suas palpebras das asas do anjo Azrael.
A ra?a arabe, inquieta, vagabunda e livre, como nenhuma outra familia humana, gostava de espalhar na terra aquelles padr?es, mais ou menos sumptuosos, do captiveiro e immobilidade da morte, talvez para avivar mais o sentimento da sua independencia illimitada durante a vida.
No recosto de um teso, elevado no extremo de extensa gandra que subia das margens do Guadamellato para o nordeste, estava assentado um desses cemiterios pertencente �� tribu Yemenita dos Beni-Homair. Subindo pelo riu, viam-se alvejar ao longe as pedras das sepulturas como um vasto estendal, e tres unicas palmeiras, plantadas na cor?a do outeiro, lhe tinham feito dar o nome de cemiterio de al-tamarah. Transpondo o cabe?o para o lado oriental, encontrava-se um desses brincos da natureza, que nem sempre a sciencia sabe explicar: era um cubo de granito de desconforme dimens?o, que parecia ter sido posto alli pelos esfor?os de centenares d'homens, porque nada o prendia ao solo. Do cimo desta especie de atalaia natural descortinavam-se para todos os lados vastos horisontes.
Era um dia �� tarde: o sol descia rapidamente, e j�� as sombras principiavam do lado de l��ste a empastar a paisagem ao longe em negrumes confusos. Assentado na borda do rochedo quadrangular um arabe dos Beni-Homair, armado da sua comprida lan?a, volvia olhos attentos, ora para o lado do norte, ora para o de oeste: depois sacudia a cabe?a com um signal negativo, inclinando-se para o lado opposto da grande pedra. Quatro sarracenos estavam alli tambem assentados em diversas posturas e em silencio, o qual s�� era interrompido por algumas palavras rapidas, dirigidas ao da lan?a, e a que elle respondia sempre do mesmo modo com o seu menear de cabe?a.
"Al-barr,"--disse por fim um dos sarracenos cujo trajo e gestos indicavam uma grande superioridade sobre os outros--"parece que o kaid de Chantoryu[1] esqueceu a sua injuria como o wali de Zarkosta[2] a sua ambi??o d'independencia; e at�� os partid��rios de Hafsun, esses guerreiros tenazes, tantas vezes vencidos por meu pae, n?o podem acreditar que Abdallah realise as promessas que me induziste a fazer-lhes."
"Amir-al-melek[3],"--replicou Al-barr--"ainda n?o �� tarde: os mensageiros podem ter sido retidos por algum successo imprevisto. N?o creias que a ambi??o e a vingan?a adorme?am t?o facilmente no cora??o humano. Dize, Al-athar, n?o te juraram elles pela sancta Kaaba[4] que os enviados com a noticia da sua revolta e da entrada dos christ?os chegariam hoje a este logar aprazado, antes do anoitocer?"
"Juraram--respondeu Al-athar--; mas que f�� merecem homens que n?o duvidam de quebrar as promessas solemnes feitas ao kalifa, e al��m d'isso de abrir o caminho aos infi��is para derramarem o sangue dos crentes? Amir, nestas negras tramas tenho-te servido lealmente; porque a ti devo quanto sou; mas oxal�� que falhassem as esperan?as que p?es nos tens occultos alliados. Oxal�� n?o tivesse de tingir o sangue as ruas de Korthoba, e n?o houvera de ser o suppedaneo do throno que ambicionas o tumulo de teu irm?o!"
Al-athar cobriu a cara com as m?os, como se quizesse esconder a sua amargura. Abdallah parecia commovido por duas paix?es oppostas. Depois de se conservar algum tempo em silencio, exclamou:
"Se os mensageiros dos revoltosos n?o chegarem at�� o anoitecer, n?o falemos mais n'isso. Meu irm?o Al-hakem acaba de ser reconhecido successor do kalifado: eu pr��prio o acceitei por futuro senhor poucas horas antes de vir ter comvosco. Se o destino assim o quer, fa?a-se a vontade de Deus! Al-barr, imagina que os teus sonhos ambiciosos e os meus foram uma kassid��h[5] que n?o soubeste acabar, como aquella que debalde tentaste repetir na presen?a dos embaixadores do Frandjat[6], e que foi causa de cahires no desagrado de meu pae e de Al-hakem, e de conceberes esse odio que alimentas contra elles, o mais terr��vel odio deste mundo, o do amor pr��prio offendido."
Ahmed Al-athar e o outro arabe sorriram ao ouvirem estas palavras de Abdallah. Os olhos, por��m, de Al-barr faiscaram de colera.
"Pagas mal, Abdallah,--disse elle com a voz presa garganta--os riscos que tenho corrido para te obter a heran?a do mais bello e poderoso imp��rio do Islam. Pagas com allus?es affrontosas aos que jogam a cabe?a com o algoz para te p?r na tua uma cor?a. ��s filho de teu pae! ... N?o importa. S�� te direi que �� j�� tarde para o arrependimento. Pensas acaso que uma conspira??o sabida de tantos ficar�� occulta? No ponto a que chegaste, retrocedendo �� que has-de encontrar o abysmo!"
No rosto de Abdallah pintava-se o descontentamento e a incerteza. Ahmed ia a falar, talvez para ver de novo se divertia o pr��ncipe da arriscada empresa de disputar a coroa a seu irm?o Al-hakem. Um grito, por��m, de atalaia o interrompeu. Ligeiro
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