Lagrimas Abençoadas | Page 2

Camilo Castelo Branco
as virtudes possiveis no mundo...
Se lhe pedisseis, em vez da pagina sempre negra da sua vida, as alvissimas alegrias de uma virgem, que, a fugir de um mundo, que se lhe pinta ingrato á sua alma candida, se refugia aos pés de Maria, Rainha das Virgens, a pedir-lhe o céo, como repouso inviolavel da innocencia...
Se lhe pedisseis a do?ura das lagrimas da pobre, que aconchega seus filhos n'um envoltorio de andrajos, e ajoelha depois, entregando-os á Providencia, para que, ao amanhecer, n?o sejam muito repetidos os seus gritos de fome...
Pedi.
O poeta ha-de dizer-vos que a luz do céo é esse oceano de luz, que banha a terra, quando as arvores florescem e as arvores saudam ao alvorecer um sol esplendido.
Ha-de falar-vos da virgem, arfando esperan?as no seio immaculado, mas esperan?as todas d'aqui, todas embalsamadas pelo incensorio das paix?es terrenas.
O pobre, esse que vale bem a pena de uma poesia, de uma pagina de romance, é sempre a victima da má organisa??o social, e de uma mentirosa economia politica. Vê'-lo-heis invectivar o rico, com toda a iracundia de uma inoffensiva estrofe; mas o pobre que continua nas palhas da miseria, esse n?o recebe uma consola??o em nome do futuro, do céo, e das promessas de Jesus Christo. é sempre o pobre recrutado para as fileiras que guerreiam o rico.
Eu pensei, uma vez, na vastid?o de assumptos sobre que o sceptro do talento extende o seu imperio. Chamando á reminiscencia o acervo de leituras recreativas, que fiz, durante alguns annos, entrevi nos meus tempos nebulosos o muito tempo consumido, os muitos volumes folheados, e n?o poderei classificar-vos, em synopse de idéas, uma só que me prestasse ao espirito, ou ao cora??o, ou á cabe?a.
Aprendi o desengano no romance, antes que a sociedade m'o desse.
Libei na poesia do seculo a mentira, antes que o cora??o contaminado m'a inspirasse.
Aborreci-me de mim e das minhas leituras, como se o livro e a poesia fossem um sarcasmo para quem nas más horas, lhe mendiga espairecimentos para o espirito.
Vislumbravam-me no escuro das minhas idéas religiosas uns clar?es pallidos do que o romance e a poesia deveriam ser para ado?arem muitos infortunios. Mas, que me pedissem a idéa formulada no livro! Faltava-me a convic??o das virtudes do balsamo para saber applica'-lo á ferida.
N?o tinha eu provado ainda as do?uras da religi?o para sentar-me com a ta?a do Evangelho, á borda do caminho, e dizer ao peregrino can?ado:
Bebe!......................................
D?o-vos tedio estas minhas considera??es? N?o s?o vaidosas. Eu juro-vos que me doeria muito se uma verdade, esbo?ada com amplos contornos, n?o valesse mais que uma mentira, alinhada com o ouropel de um desusado estylo.
O que está dito é o prefacio do meu romance. Duas palavras resumem-n'o laconicamente n'uma idéa conceituosa.
Sei em que tempo escrevo, e comtudo, ouso nos estreitos limites de que posso disp?r, ajustar em molde christ?o um genero, raras vezes assim tratado, quer pela costumeira da forma, quer pelo estylo, quer pelas leis da escola.
Escrevo um romance, ou antes descanto em prosa uma virtude, porque n?o desafinarei, em quanto possa, a lyra em que fiz soar algumas poesias, unicas de que me n?o culpo, nem arrependo. As outras...
Se eu pudesse avaliar a vossa opini?o, consolava-me de n?o ser enganado pela minha consciencia de christ?o e de artista.
Porto--em 1853.

LAGRIMAS ABEN?OADAS

LIVRO I
I
Disseram muitos dos que estavam em redor de uma creancinha, na pia do baptismo, que na face d'ella havia uma luz mysteriosa, como a projec??o de um cirio invisivel, que, n'aquelle instante solemne, allumiasse, nas m?os de um anjo, as cerimonias do sacramento augusto. Vis?o de boas almas.
Era uma menina de nove dias.
Sua madrinha era Nossa Senhora da Concei??o, fulgurante de mil lumes, no seu docel de seda e prata, com as m?os cruzadas sobre o seio, com os olhos extaticos no céo, como seguindo o trilho de estrellas por onde, aos pés do Eterno, voejava o anjo da ANNUNCIA??O.
Seu padrinho era um duque, vestido de ouro, com as suas insignias de general em chefe, com o seu thesouro de condecora??es guerreiras a cobrirem-lhe o peito, onde pulsava sangue de reis, que n?o valia mais, por isso, em cora??o de homem.
Seu pae era um coronel, fidalgo dos que primeiro o foram n'esta terra, valente como o primeiro e o ultimo da sua linhagem, e honrado como aquelle de seus avós, que morrera desterrado, em Tanger, por n?o denunciar o que lhe f?ra amigo desleal, embora traidor ao rei D. Jo?o II.
Era o coronel... que vos importa o nome?!...
Sua m?e nascera dama de D. Maria I, crescera mimo de galanteria e docilidade, emancipára-se donzella de todas as virtudes, casára-se, mulher, exemplo das mais santas affei??es de um marido, e f?ra m?e como póde se'-lo a mulher, depois que a Virgem Maria alimentou um filho, depois que Jesus Christo rehabilitou a fascinada da serpente, depois que a filha de Eva entrou no
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