As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes | Page 8

Ramalho Ortigão
é hoje a unica capital da Europa em que isto succede. Não
queremos dar-lhe em parallelo Paris, Berlim, Bruxellas, Londres, S.
Petersburgo, qualquer das grandes cidades da Italia ou da Hollanda.
Apontaremos apenas Madrid, e não citaremos senão um dos seus
institutos particulares, o Atheneu, sociedade da natureza do Gremio
Litterario em Lisboa. No Atheneu os cursos publicos, livres, gratuitos,
abriram-se no mez de outubro, tendo havido desde o dia da abertura
prelecções, conferencias ou debates em todas as noites. Teem-se
ventilado as mais interessantes questões da philosophia e da sciencia
social no ponto de vista de espiritos altamente cultos.
Em Lisboa o progresso social, o movimento ascendente da civilisação
manifestou-se unicamente pela apparição de tres estancos novos no
Chiado e de uma ourivesaria no largo das Duas Egrejas. Como á falta
de objecto para outros interesses mais elevados, nós occupavamos os
nossos ocios encostando-nos ás humbreiras das tabacarias a ver
dispersar-se no ar o fumo dos nossos charutos, as tabacarias

comprehenderam que este estado geral dos espiritos deveria começar a
fatigar os habitantes de Lisboa, e dotaram-os com sofás. Para o anno os
estancos requintarão ainda as condições de commodidade e havemos de
ver os estanqueiros sairem ao encontro dos desejos do publico com
colchões. Chegaremos á Casa Havaneza, despir-nos-hemos, poremos a
camisa de dormir e fumaremos os nossos carvajales deitados em camas,
á porta.
* * * * *
A ourivesaria do largo das Duas Egrejas teve o successo de uma
instituição. Ella é como um templo ao luxo, como um altar ao deus
Ouro, tal como o conceberiam, erigido com todo o esplendor do culto,
os Pharaós da Rua dos Capellistas. A armação interior da loja é feita
em Paris segundo os elegantes modelos das joalherias da rua de la Paix
ou do Palais Royal. Armarios da mais verosimil imitação de ebano
sobre um parquet brunido. Tecto de um azul idealisado, representando
um trecho de ceu coberto de creme.
Nas vitrines, de um só cristal immaculado, desdobram-se em degraus,
como n'um throno de lausperenne, as prateleiras de veludo cor de cereja,
de cuja suavidade macia e ardente destacam em vigoroso relevo as joias
em exposição. A um lado pendem em meada as correntes de relogio
exhibidas como o corpo de delicto de uma quadrilha de pick-pocket
apanhados com o roubo. Suspensos nas extremidades das correntes
pousam em baixo os breloques, n'um grande molho confuso, como se
adornassem um collete monstro sobre o estomago collectivo e
proeminente do capital.
Nos logares mais proximos de quem olha estão os miudos objectos
preciosos, as finas pedras raras, os olhos de gato castanhos e amarellos
em pequenas elypses cujo grande eixo é indicado por uma linha que
separa nitidamente as duas côres; as perolas negras de um tom
profundo, que não é o preto, é o infinitamente escuro, como a noite; as
perolas côr de rosa sobresaindo em cercaduras de brilhantes como
capsulas cabalisticas feitas de substancias extraidas de uma
cristalisação mimosa de beijos ternos e de perfumes castos.

No segundo plano apparecem os ornamentos de mais vulto: os broches
tremelusentes e vivos como esparrinhaduras de diamantes e de rubis
chispando no ar; as flores imaginosas de petalas de aljofar ou de
saphira, orvalhadas de pulverisações de esmeralda; os medalhões em
camafeus preciosos sobre pedras de tres côres nos tres planos da
esculptura; as eflorescencias phantasticas das onix, das granadas, das
malaquites, das opalas; em raios como estrellas, em sobreposições
como pinhas, listradas, rajadas, mosquetadas, affestoadas, zebradas
com todas as scintillações do prisma.
Mais longe offerecem-se os braceletes nos seus estojos côr de lilaz. Uns
são fortes e duros como os violentos desejos, outros vaporosos e finos
como aspirações platonicas. Nas suas variadas formas teem
physionomias, revelam temperamentos. Ha-os lascivos e ardentes,
colleados em quatro roscas de um ouro fulvo, terminando n'uma cabeça
de cobra esmagada por um esbraseamento de rubi. Ha-os
contemplativos e ingenuos, de uma côr limphatica, salpicados de frias e
innocentes turquezas. Tambem os ha trasbordantes de uma vida farta e
victoriosa, largos, rendilhados, superabundantes de cores, expansivos e
triumphaes como orchestras, soprando hymnos de um enthusiasmo
sanguineo, vermelho, despotico.
Em outra vitrine está a exposição das pratas: os centros de mesa
representando palmeiras, á sombra das quaes se empinam cavallos em
pello, que deverão parecer relinchar de amor no meio das sobremesas,
entre as frutas empilhadas geometricamente em pyramide sobre taças
de filigrana e os gelados transparentes impregnados de luz, tremulos,
côr de topasio; as bacias de mãos, de desenhos bysantinos repoussés; os
jarros de forma etrusca; os assucareiros graves e concentrados como
vasos de particulas sagradas; e os grossos bules barrigudos e polidos,
nos quaes se espelham os rostos em caricatura monstruosa, com
bochechas obscenas, narizes que incham como focinhos de vitela e
bocas que riem até as nucas.
* * * * *
Ao accender das luzes,
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