As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes | Page 7

Ramalho Ortigão
tendo pago sempre a v. ex.'a quantia que combinámos quando v. ex.'a fez comigo o contracto de eu lhe mandar o imposto para Lisboa e de v. ex.'a me mandar para aqui a civilisa??o. Até á data d'esta nada recebi.
Os deputados que para ahi tenho expedido á custa de muita intriga, de muito dinheiro, de muito copo de vinho e de bastantes bordoadas distribuidas com as listas á bocca da urna, nada remetteram para cá sen?o discursos cheios de exclama??es e de erros de grammatica. Gra?as aos effeitos de quarenta annos de eloquencia sobre os trabalhos da terra e sobre as obras do rio, este cresceu repentinamente com as ultimas chuvas, invadiu-me a casa e levou-me tudo: moveis, roupas, generos, ferramentas.
Acho-me na derradeira miseria.
Antigamente, antes do contrato que v. ex.'a fez comigo e a que já alludi, o dinheiro que eu ganhava, em vez de o mandar para Lisboa, entregava-o aqui assim ao morgado, ao capit?o-mór, e ao convento. Mas o morgado e o capit?o-mór, se por um lado me arrancavam a pelle como v. ex.'a hoje faz, por outro lado eram meus amigos. Eram meus compadres, padrinhos dos meus filhos; davam-lhes as br?as e as amendoas pelas festas do anno, esperavam pelas rendas, punham os varapaus argolados dos seus mo?os e os d'elles proprios ao servi?o da nossa causa, quebravam todos os ossos do corpo aos corregedores, aos alcaides, aos portageiros e aos almotacés, quando estes se faziam finos, matavam-nos de quando em quando a crea??o ou davam-nos chicotadas quando estavam bebados, mas em seu juizo eram bons homens e tinham sempre as portas e os bra?os abertos para nos acudirem, para nos protegerem e para nos ajudarem. Os frades resavam,--o que, se n?o nos fazia bem, tambem nos n?o fazia mal; e esta é a differen?a que distingue os frades dos seus successores, os deputados: o frade resava, os deputados intrigam. Além d'isso, os frades, se diziam asneiras, diziam as pelo menos em latim, o que sempre acho que lhes custaria mais do que dizel-as em portuguez rasteiro e agallegado como me dizem que os deputados fazem. Finalmente os frades, se de ordinario viviam á nossa custa, tambem nas occasi?es de crise nos permittiam viver á custa d'elles, e o caldo da portaria era uma restitui??o.
Quem até hoje n?o tem restituido a importancia de um vintem nem em dinheiro, nem em caldo, nem em presentes, nem em favores de nenhuma especie é v. ex.'a, meu nobre e illustre senhor.
Tudo quanto tenho pago a v. ex.'a a titulo de imposto, v. ex.'a o tem gasto na verba recreios: exercito com as suas revistas e as suas paradas; corpo diplomatico; c?rte; gratifica??es aos doze homens que representam o governo trotando sobre as pilecas de uns atraz das tipoias dos outros; governadores civis e secretarios geraes; desembargadores para G?a e juizes para os A?ores; reparti??es publicas; arsenaes; imprensa nacional; fabrica das cordas; etc.
Portanto, achando-me eu hoje sem real em consequencia de uma desgra?a de que v. ex.'a tem a principal culpa, quer-me parecer que n?o serei desarrazoado pedindo-lhe o favor de me abonar para as minhas necessidades mais urgentes uma pequenissima parte das sommas com que eu ha cincoenta annos tenho estado a custear uma galhofa para a qual nem sequer ao menos me teem convidado,
D'este que é
De v. ex.'a
Humilde subdito e servo
O Inundado.
A resposta do Estado a estas argumenta??es e a estas instancias é de tal modo recreativa, que pareceria inventada, se a sua authenticidade n?o fosse reconhecida, como é, de todo o mundo.
O Estado respondeu:
Meu caro Inundado.--A tua estimada carta veiu encontrar-me em uma situa??o bem critica para te poder servir, como desejava.
Acho-me a bra?os com a resposta ao discurso da cor?a, com a appari??o dos granjolas e com a segarrega do Barros e Cunha. Falta-me tempo para me occupar de ti.
Pedi a sua magestade a Rainha para te abrir uma subscrip??o. A rainha acceitou gostosa esta incumbencia. Vieram a Palacio todos os banqueiros e todos os capitalistas da cidade. Nomearam-se commiss?es de homens e commiss?es de senhoras para promover bazares de prendas, concertos de amadores e recitas de curiosos em teu beneficio.
Dizes-me que n?o tens nada de comer. é pouco. Todavia espero que, com alguma economia, possas d'isso mesmo tirar alguns jantares, ainda que simples, com que te alimentes durante este mez e parte do que vem. Sê sobrio. Um bom caldo, um peixe, um assado, um prato de legumes e meia garrafa de vinho é quanto te deve bastar. Como n?o tens nada, resigna-te um pouco e abstem-te de champagne e de fais?es dourados. Perdeste a casa, a mobilia e o fato. Vae para o hotel, enrola-te na tua robe de chambre e n?o saias por estes dias. Conserva-te no teu quarto, ao fog?o, toma grogs e lê romances. Reveste-te de paciencia, já que n?o podes revestir-te
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