As Farpas (Junho 1883) | Page 9

Eça de Queiroz Ramalho Ortigão
não é d'essas que se trata.

Os pedagogos de vossa alteza, insinuando-lhe que é racional e moral a
philosophia que lhe ensinam, deixam entender que ha tambem uma
philosophia immoral e uma philosophia irracional, opposta a essa. É
triste o pensar que vossa alteza está desde de 1878 a estudar uma coisa
que se converterá n'um systema de irracionalidade e n'uma doutrina de
desmoralisação desde que vossa alteza se dê ao ligeiro trabalho de virar
pelo avesso a tal coisa que lhe ensinaram.
O programma que tem regulado a instrucção de vossa alteza
accrescenta que vossa alteza tem estudado essa philosophia na
_direcção do estudo superior da philosophia do direito, e que assim
preparado começou em seguida o estudo do direito natural_.
Perante uma tão espantosa affirmativa deitamos abaixo das estantes
todos os livros de «direcção philosophica» desde a mais remota
antiguidade até os nossos dias.
Interrogamos avidamente as tradições egypcias do tempo das dynastias
pharoonicas, contemporaneas das pyramides e anteriores de quatro mil
annos á era de Christo, os vestigios que restam dos papyrus do _Ritual
funerario e do Livro dos mortos_.
Interrogamos quanto se sabe ao presente da passagem no tempo e no
espaço da philosophia chineza do Y-King e do Chou-King.
Inquirimos tambem, posto que com mais reserva, bem entendido,
quanto se deslinda para a especulação philosophica dos mythos e dos
emblemas indecentes das religiões e das liturgias phallicas da Chaldea
e da Syria.
Relemos com olho pressuroso, e manuseamos com mão nervosa e
ligeira tudo quanto o snr Vasconcellos Abreu tem feito a mercê de nos
communicar a respeito dos systemas philosophicos e mais systemas dos
Aryas.
Consultamos Thales de Mileto e Democrito, Socrates e Platão,
Aristoteles, Zenon e Epicuro, Pomponacio e Averroes, todos os
escholasticos, todos os platonicos, todos os peripateticos, todos os

epicuristas, todos os pantheistas, todos os scepticos, todos os
materialistas, e todos os atheus, sem excepção d'um só, desde os
Dialogos da Natureza do seculo XVII até o nosso moderno Trinta,
comprehendendo todos os atheus verdadeiros e todos os atheus fingidos,
desde Vanini, que morreu queimado como impio pelo parlamento de
Tolosa, até um bom tendeiro nosso amigo que deixou de ir á missa ha
mais de um anno, para não se comprometter com os socios do club
Gomes Leal.
Pois bem: ao cabo de tão laboriosas excavações eruditas e de tão vastas
investigações historicas, podemos asseverar, sob nossa palavra de
honra, a vossa alteza, que nada encontramos nem nas tradições, nem
nos livros sabios, nem na conversação viva dos doutos, que nos possa
dar, ainda que mui remotamente, ideia alguma do que venha a ser o
_estudo de uma philosophia especialmente dirigido para o estudo de
outra philosophia_, como aquella de que tão gloriosamente se trata no
quadro dos conhecimentos propinados a vossa alteza pelos seus
venerandos mestres.
O Direito Natural, em que se diz que vossa alteza entrou depois do
preparo da philosophia especialmente dirigida para a philosophia, é a
reliquia rarissima de um estado mental que desappareceu da esphera
philosophica, mas cujos vestigios tivemos a fortuna de poder encontrar
ainda entre os ferros-velhos da historia do pensamento.
Parece que houve com effeito, em tempos, o que quer que fosse a que
se deu o nome hoje archaico de Direito Natural.
Além da gente anonyma e desconhecida que com mão mysteriosa
taberneia em Portugal o ensino publico e o de vossa alteza, ninguem
mais ignora hoje em dia que todo o Direito é um producto da
civilisação, e nunca uma manifestação ou uma obra da natureza. Nas
sociedades rudimentares não se conhece o Direito. Nas sociedades
civilisadas o Direito varia, segundo as concepções intellectuaes que
dirigem o progresso em cada uma d'essas sociedades. E d'ahi vem que o
Direito é eterno. É eterno precisamente porque é progressivo, como é
progressiva a moral e a arte, e não porque seja um ideal innato á
natureza do homem.

O erro da velha denominação de Direito Natural procedia de que os
philosophos desconheciam a natureza, e em sua boa fé a consideravam
recta e justa. Mas Darwin veio. Desde então ficou demonstrado que,
pelos processos porque ella opera na formação dos aggregados
humanos, a natureza é immoral e é iniqua.
A lei do universo basea-se sobre o concurso d'estes dois grandes
agentes: a luta pela vida e a selecção natural. A luta pela vida é o
estado permanente de todos os seres, para os quaes a creação é uma
eterna batalha. A sorte do conflicto decide-a a selecção natural. Como?
Fixando na especie, pela adaptação ao meio, os seres mais fortes, e
expulsando os seres inferiores. Por isso o professor Haeckel affirma:
«A theoria de Darwin estabelece que nas sociedades humanas, como
nas sociedades animaes, nem os direitos nem os deveres nem os bens
nem os gosos dos membros associados podem ser eguaes.»
Ora o que
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