A Queda dum Anjo | Page 4

Camilo Castelo Branco
do Matta, ou outro que tal ecónomo dos apollineos dons.
Em geral, aquella mocidade esperan?osa, eleita por Miranda e outros sert?es lusitanos, n?o sabia topographicamente em que parte demoravam os povos seus comittentes, nem entendia que os aborigenes das serranias tivessem mais necessidades que fazerem-se representar, obrigados pelo regimen da constitui??o. Se algum influente eleitoral, prelibando as delicias do habito de Christo, obrigára a urna e o senso commum a gemer nos apertos do doloroso parto do paralta lisboeta, o tal influente considerava-se idóneo para escrever ao deputado incumbindo-lhe trabalhar na nomea??o d'um vigario cham?rro, ou outra coisa, que foi denomina??o de bando politico, em tempo que a politica n?o sabia sequer dar-se nomes decentes. Pois o deputado n?o respondia á carta do influente, nem o requerente sabia onde procural-o, fóra do Marrare.
Por muitos factos d'esta natureza conspiraram os influentes do circulo de Miranda contra os delegados do governo; e a idéa de eleger o morgado foi recebida entusiasticamente por todos aquelles que o ouviram fallar no adro da egreja, e por quantos houveram noticias da sua parlenda.
O partido, que o mestre-escola ganhára de eloquente assalto, cedeu ao imperio das rasoaveis conveniencias, e conglobou-se na maioria. A verbosidade, porém, do professor n?o ficou despremiada, sendo nomeado secretario da junta de parochia.
Resistiu Calisto de Barbuda tenazmente ás solicita??es dos lavradores, que o procuraram com o mestre-escola á frente, facto que muito honra este desinteresseiro e reportado funccionario. N'este encontro, o professor excedeu o juizo avantajado que elle propriamente fazia de sua voca??o oratoria. Mostrou as fauces do abysmo escancaradas para tragarem Portugal, se os sabios e virtuosos n?o acudissem a salvar a patria moribunda. Calisto Eloy, enternecido até ás lagrimas pela sorte da terra de D. Jo?o I, voltou-se para a esposa, e disse, como o agricultor Cincinnatus:
--Aceito o jugo! Assás receio, mulher, que os nossos campos sejam mal cultivados este anno...
Estavam proximas as elei??es.
A authoridade, assim que soube da resolu??o do morgado da Agra, preveniu o governo da inutilidade da lucta. N?o obstante, o ministro do reino redobrou instancias e promessas, no intuito de vingar a candidatura de um poeta de Lisboa, mancebo de muitas promessas ao futuro, que tinha escripto revistas de espectaculos, e recitava versos d'elle ao piano, cuja falta ou demasia de syllabas a bulha dos sonoros martellos disfar?ava. Redarguiu o administrador do concelho ao governador civil, que pedia sua demiss?o para n?o soffrer a inevitavel e desairosa derrota.
Quiz assim mesmo o governo alliciar no circulo algum proprietario, que contraminasse a influencia do candidato legitimista, fazendo-se eleger. Alguns lavradores, menos afferrados á candidatura de Calisto, lembraram á authoridade o professor de instruc??o primaria, estropeando phrases dos discursos d'elle, proferidos na botica. O administrador riu-se, e mandou-os bugiar, como parvoinhos que eram.
Por derradeiro, o governador civil fez saber ao ministerio que os povos de Vimioso, Alcanissas e Miranda se haviam levantado com selvagem independencia e tintam fugido com a urna para os desfiladeiros das suas serras. Pelo conseguinte, n?o p?de ser proposto o poeta, que beliscado na sua vaidade assanhou-se contra o governo, escrevendo umas feras objurgatorias, as quaes, se tivessem grammatica á propor??o do fel, o governo havia de p?r as m?os na cabe?a e demittir-se.
á excep??o de uma lista, o morgado da Agra de Freimas teve-as todas. A que n?o tinha o nome sympathico aos eleitores, votava em Braz Lobato, professor de instruc??o primaria, secretario da junta de parochia, e ex-sargento das milicias de Mirandella. Parece que votára em si o mestre-escola. A final, maculou a alvura do nobilissimo desprendimento com que perorara em pró da elei??o de Calisto! Fragilidade humana!
Principiou, desde logo, o morgado eleito a refrescar a memoria com as suas leituras de historia grega e romana; era isto entroixar sciencia e enfreixar flores para o parlamento. Depois, releu a legisla??o dos bons tempos de Portugal, afim de restaurar os costumes desbaratados, fazendo remo?ar as leis, que haviam sido o tabernaculo da moral humana guardado pelo temor de Deus. Tosquenejou muitas noites sobre os bacamartes pulvéreos; e, desde que a manh? raiava até horas de almo?o, ia á margem do Douro, que lhe lambia a ourela da quinta, declamar, como Demosthenes nas ribas maritimas, ao stridor de uma a?ude e das rodas de duas azenhas. Os moleiros, que o viam bracejar, e lhe ouviam o vozeamento, benziam-se, pensando que o sabio treslêra, ou coisa má lhe entrara no corpo. A sr.^a D. Theodora Figueir?a, vendo o marido assim tresnoitado, seguia-o ás vezes, de madrugada, espreitava-o de um cabe?o sobranceiro ao rio, e benzia-se tambem, dizendo: ?D?o-me com o homem doido!?
Chegou o tempo de partir para a capital.
O deputado mandou adiante por almocreve duas cargas de livros, nenhum dos quaes tinha menos de cento e cincoenta annos.
Seguia-se, na conducta dos machos portadores, uma carga de persunto e orelheira, substancia quotidiana da alimenta??o de Calisto Eloy.
Depois, outra
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