A Cidade e as Serras | Page 3

Eça de Queirós
Geraes; e a sua intelligencia, nos annos alegres de esc��las e controversias, c��rculava dentro das Philosophias mais densas como enguia lustrosa na agua limpa d'um tanque. O seu valor, genuino, de fino quilate, nunca foi desconhecido, nem desapreciado; e toda a opini?o, ou mera facecia que lan?asse, logo encontrava uma aragem de sympathia e concordancia que a erguia, a mantinha emballada e rebrilhando nas alturas. Era servido pelas cousas com docilidade e carinho;--e n?o recordo que jamais lhe estalasse um bot?o da camisa, ou que um papel maliciosamente se escondesse dos seus olhos, ou que ante a sua vivacidade e pressa uma gaveta perfida emperrasse. Quando um dia, rindo com descrido riso da Fortuna e da sua Roda, comprou a um sachrist?o hespanhol um Decimo de Loteria, logo a Fortuna, ligeira e ridente sobre a sua Roda, correu n'um fulgor, para lhe trazer quatro centas mil pesetas. E no ceu as Nuvens, pejadas e lentas, se avistavam Jacintho sem guarda chuva, retinham com reverencia as suas aguas at�� que elle passasse... Ah! o ambar e o funcho da snr.^a D. Angelina tinham escorra?ado do seu destino, bem triumphalmente e para sempre, a Sorte-Ruim! A amoravel av�� (que eu conheci obesa, com barba) costumava citar um soneto natalicio do desembargador Nunes Velho contendo um verso de boa li??o:
Sabei, senhora, que esta Vida �� um rio...
Pois um rio de ver?o, manso, translucido, harmoniosamente estendido sobre uma areia macia e alva, por entre arvoredos fragrantes e ditosas aldeias, n?o offereceria ��quelle que o descesse n'um barco de cedro, bem toldado e bem almofadado, com fructas e Champagne a refrescar em gelo, um Anjo governando ao leme, outros Anjos puxando �� sirga, mais seguran?a e do?ura do que a Vida offerecia ao meu amigo Jacintho.
Por isso n��s lhe chamavamos ?o Principe da Gran-Ventura?!
* * * * *
Jacintho e eu, Jos�� Fernandes, ambos nos encontramos e acamaradamos em Paris, nas Esc��las do Bairro Latino--para onde me mand��ra meu bom tio Affonso Fernandes Lorena de Noronha e Sande, quando aquelles malvados me riscaram da Universidade por eu ter esborrachado, n'uma tarde de prociss?o, na Sophia, a cara sordida do dr. Paes Pitta.
Ora n'esse tempo Jacintho conceb��ra uma Ideia... Este Principe conceb��ra a Ideia de que ?o homem s�� �� superiormente feliz quando �� superiormente civilisado?. E por homem civilisado o meu camarada entendia aquelle que, robustecendo a sua for?a pensante com todas as no??es adquiridas desde Aristoteles, e multiplicando a potencia corporal dos seus org?os com todos os mechanismos inventados desde Theramenes, creador da roda, se torna um magnifico Ad?o, quas�� omnipotente, quas�� omnisciente, e apto portanto a recolher dentro d'uma sociedade e nos limites do Progresso (tal como elle se comportava em 1875) todos os gozos e todos os proveitos que resultam de Saber e de Poder... Pelo menos assim Jacintho formulava copiosamente a sua Ideia, quando conversavamos de fins e destinos humanos, sorvendo bocks poeirentos, sob o toldo das cervejarias philosophicas, no Boulevard Saint-Michel.
Este conceito de Jacintho impression��ra os nossos camaradas de cenaculo, que tendo surgido para a vida intellectual, de 1866 a 1875, entre a batalha de Sadowa e a batalha de Sedan, e ouvindo constantemente, desde ent?o, aos technicos e aos philosophos, que f?ra a Espingarda-de-agulha que venc��ra em Sadowa e f?ra o Mestre-de-esc��la quem venc��ra em Sedan, estavam largamente preparados a acreditar que a felicidade dos individuos, como a das na??es, se realisa pelo illimitado desenvolvimento da Mechanica e da Erudi??o. Um d'esses mo?os mesmo, o nosso inventivo Jorge Carlande, reduz��ra a theoria de Jacintho, para lhe facilitar a circula??o e lhe condensar o brilho, a uma f��rma algebrica:
Summa sciencia} X }= Summa felicidade Summa potencia}
E durante dias, do Odeon �� Sorbonna, foi louvada pela mocidade positiva a Equa??o Metaphysica de Jacintho.
Para Jacintho, por��m, o seu conceito n?o era meramente metaphysico e lan?ado pelo gozo elegante de exercer a raz?o especulativa:--mas constituia uma regra, toda de realidade e de utilidade, determinando a conducta, modalisando a vida. E j�� a esse tempo, em concordancia com o seu preceito--elle se surtira da _Pequena Encyclopedia dos Conhecimentos Universaes_ em setenta e cinco volumes e install��ra, sobre os telhados do 202, n'um mirante envidra?ado, um telescopio. Justamente com esse telescopio me tornou elle palpavel a sua ideia, n'uma noite de agosto, de molle e dormente calor. Nos c��os remotos lampejavam relampagos languidos. Pela Avenida dos Campos Elyseos, os fiacres rolavam para as frescuras do Bosque, lentos, abertos, can?ados, transbordando de vestidos claros.
--Aqui tens tu, Z�� Fernandes, (come?ou Jacintho, encostado �� janella do mirante) a theoria que me governa, bem comprovada. Com estes olhos que recebemos da Madre natureza, lestos e s?os, n��s podemos apenas distinguir al��m, atravez da Avenida, n'aquella loja, uma vidra?a alumiada. Mais nada! Se eu por��m aos meus olhos juntar os dois vidros simples d'um binoculo de corridas, percebo, por traz da
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