A Cidade e as Serras | Page 9

Eça de Queirós
murmurou:
--Grillo!
Da parede, recoberta de damasco, que subitamente e sem rumor se fendeu, surdio o seu velho escudeiro (aquelle moleque que viera com _D. Galli?o_), que eu me alegrei de encontrar t?o rijo, mais negro, reluzente e veneravel na sua tesa gravata, no seu collete branco de bot?es de ouro. Elle tambem estimou vêr de novo ?o si? Fernandes?. E, quando soube que eu occuparia o quarto do av? Jacintho, teve um claro sorriso de preto, em que envolveu o seu senhor, no contentamento de o sentir emfim reprovido d'uma familia.
--Grillo, dizia Jacintho, esta carta a Madame de Oriol... Escuta! Telephona para casa dos Trèves que os espiritistas só est?o livres no domingo... Escuta! Eu tomo uma douche antes de jantar, tepida, a 17. Fric??o com malva-rosa.
E cahindo pesadamente para cima do divan, com um bocejo arrastado e vago:
--Pois é verdade, meu Zé Fernandes, aqui estamos, como ha sete annos, n'este velho Paris...
Mas eu n?o me arredava da mesa, no desejo de completar a minha inicia??o:
--Oh Jacintho, para que servem todos estes instrumentosinhos? Houve já ahi um desavergonhado que me picou. Parecem perversos... S?o uteis?
Jacintho esbo?ou, com languidez, um gesto que os sublimava.--Providenciaes, meu filho, absolutamente providenciaes, pela simplifica??o que d?o ao trabalho! Assim... E apontou. Este arrancava as pennas velhas; o outro numerava rapidamente as paginas d'um manuscripto; aquell'outro, além, raspava emendas... E ainda os havia para collar estampilhas, imprimir datas, derreter lacres, cintar documentos...
--Mas com effeito, accrescentou, é uma sécca. Com as molas, com os bicos, ás vezes magoam, ferem... Já me succedeu inutilisar cartas por as ter sujado com dedadas de sangue. é uma massada!
Ent?o, como o meu amigo espreitára novamente o relogio monumental, n?o lhe quiz retardar a consola??o da douche e da malva-rosa.
--Bem, Jacintho, já te revi, já me contentei... Agora até ámanh?, com as malas.
--Que diabo, Zé Fernandes, espera um momento... Vamos pela sala de jantar. Talvez te tentes!
E, através da Bibliotheca, penetramos na sala de jantar,--que me encantou pelo seu luxo sereno e fresco. Uma madeira branca, laccada, mais lustrosa e macia que setim, revestia as paredes, encaixilhando medalh?es de damasco c?r de morango, de morango muito maduro e esmagado: os aparadores, discretamente lavrados em flor?es e rocalhas, resplandeciam com a mesma lacca nevada: e damascos amorangados estofavam tambem as cadeiras, brancas, muito amplas, feitas para a lentid?o de gulas delicadas, de gulas intellectuaes.
--Viva o meu Principe! Sim senhor... Eis aqui um comedoiro muito comprehensivel e muito repousante, Jacintho!
--Ent?o janta, homem!
Mas já eu me come?ava a inquietar, reparando que a cada talher correspondiam seis garfos, e todos de feitios astuciosos. E mais me impressionei quando Jacintho me desvendou que um era para as ostras, outro para o peixe, outro para as carnes, outro para os legumes, outro para as fructas, outro para o queijo! Simultaneamente, com uma sobriedade que louvaria Salom?o, só dois copos, para dois vinhos:--um Bordeus rosado em infusas de crystal, e Champagne gelando dentro de baldes de prata. Todo um aparador porém vergava, sob o luxo redundante, quasi assustador d'aguas--aguas oxigenadas, aguas carbonatadas, aguas phosphatadas, aguas esterilisadas, aguas de saes, outras ainda, em garrafas bojudas, com tratados therapeuticos impressos em rotulos.
--Santissimo nome de Deus, Jacintho! Ent?o és ainda o mesmo tremendo bebedor d'agua, hein?... Un aquatico! como dizia o nosso poeta chileno, que andava a traduzir Klopstock.
Elle derramou, por sobre toda aquella garrafaria encarapu?ada em metal, um olhar desconsolado:
--N?o... é por causa das aguas da Cidade, contaminadas, atulhadas de microbios... Mas ainda n?o encontrei uma b?a agua que me convenha, que me satisfa?a... Até soffro sêde.
Desejei ent?o conhecer o jantar do Psychologo e do Symbolista--tra?ado, ao lado dos talheres, em tinta vermelha, sobre laminas de marfim. Come?ava honradamente por ostras classicas, de Marennes. Depois apparecia uma sopa d'alcachofras e ovas de carpa...
--é bom?
Jacintho encolheu desinteressadamente os hombros:
--Sim... Ea n?o tenho nunca appetite, já ha tempos... Já ha annos.
Do outro prato só comprehendi que continha frangos e tubaras. Depois saboreariam aquelles senhores um filete de veado, macerado em Xerez, com gelêa de noz. E por sobremeza simplesmente laranjas geladas em ether.
--Em ether, Jacintho?
O meu amigo hesitou, esbo?ou com os dedos a ondula??o d'um aroma que s'evola.
--é novo... Parece que o ether desenvolve, faz afflorar a alma das fructas...
Curvei a cabe?a ignara, murmurei nas minhas profundidades:
--Eis a Civilisa??o!
E, descendo os Campos Elyseos, encolhido no paletot, a cogitar n'este prato symbolico, considerava a rudeza e atolado atrazo da minha Gui?es, onde desde seculos a alma das laranjas permanece ignorada e desaproveitada dentro dos gomos sumarentos, por todos aquelles pomares que ensombram e perfumam o valle, da Roqueirinha a Sandofim! Agora porém, bemdito Deus, na convivencia de um t?o grande iniciado como Jacintho, eu comprehenderia todas as finuras e todos os poderes da Civilisa??o.
E, (melhor ainda para a minha ternura!) contemplaria a raridade d'um homem que, concebendo uma idéa da Vida, a realisa--e através d'ella
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