Á hora do crime | Page 3

Francisco Luiz Coutinho de Miranda

Na ignorancia dos pormenores d'aquella tragica scena, que não honra
de certo os que a executaram; fervilharam os boatos a respeito da
origem do crime.
Uns atribuiam-no aos partidos, outros a individuos despeitados, e
alguns em especial ao honrado partido republicano.
Repugnaram-me todas estas hypotheses, e indignou-me a ultima.
Onde está a abnegação, não existe o crime!
Onde vive o amor da patria, não se demora o plano tenebroso de morte,
contra uma gloria nacional!
As boccas que proclamam a liberdade para o escravo, e o principio da
inviolabilidade da vida humana; não pronunciam a voz de fogo na
encrusilhada covarde!
D'estas considerações nasceu a idéa d'escrever o--Á Hora do Crime.
Tracei-o, esforçando-me por guardar todas as conveniencias.
Puz em acção a idéa democratica; mas sem offensa para ninguem.
Advoguei o principio republicano, em these; sem que em nenhuma
hypothese offensiva podesse ser ferido qualquer dos actores do grande
drama tragico-festival, que nos ultimos dois mezes se representou em
Hespanha.
E li depois o meu modesto trabalho a um amigo consciencioso,
conhecedor dos segredos da scena, e habilissimo escriptor dramatico,

pedindo-lhe a sua opinião franca, sincera, desapaixonada, acerca do
meu pobre escripto.
Tive em resposta elogios immerecidos, que a sua amisade entendeu
dever prodigalisar-me, e uma prophecia triste, que me calou todavia no
espirito, pela experiencia que infelizmente me tem feito conhecer a
intolerancia que, altiva e arrogante, domina no meu paiz!
A prophecia foi:
--A sua peça não pode ser representada, porque nenhum empresario,
por mais liberal que seja, por mais desejo que tenha de dar ao seu
trabalho a justa recompensa que merece, lh'o porá em scena. O sr. não
sabe em que paiz vivemos?!
Acordei do lethargo em que me lançára o enthusiasmo pela minha idéa!
Conheci que o conselheiro que eu buscára cumpria o seu dever e era
leal, porque me dizia verdade!
Resignei-me com a fatalidade que persegue o meu pensamento, quando
tenta manifestar-se; e disse commigo:
--É atroz mentira, é pungente ironia, é refalsada falsidade, o principio
que para ahi se proclama, asseverando que a manifestação do
pensamento é livre em Portugal!
Não ha tal; em Portugal o pensamento vive agrilhoado á intollerancia!
Só é livre para os que se entregam á politica mesquinha do soalheiro!
Em a idéa se alargando pelos vastos horisontes da verdade eterna ha de
ir forçosamente responder por ella, como criminoso, ao tribunal ou á
cadêa, o que ousou manifestal-a!
E como é proverbio velho, que--contra a força não ha resistencia; não
insisti no intuíto, e metti o trabalho na gaveta.
A pedido de alguns correligionarios que o conhecem, dou-o hoje á
estampa.

N'esta tribuna não temo as responsabilidades, por que respondo eu pelo
que escrevi.
No theatro pode o genio da oppressão embargar-me a voz; mas na
imprensa e no comicio ha de ella soltar-se sempre livre e
desembaraçada, em quanto m'a não asphyxiarem os algozes da
liberdade!
* * * * *

Á HORA DO CRIME
PHANTASIA DRAMATICA
* * * * *
*PERSONAGENS*
D. Emilio Castellar--chefe do partido republicano hespanhol. D.
Ramon Viegas--correligionario de D. Emilio. D. Carlos
Viegas--correligionario de D. Emilio. Martinez--ajudante do general
Prim. Izabel--filha de D. Ramon e noiva de Martinez. Pablo--criado de
D. Ramon. Correligionarios de D. Emilio
A acção passa-se em casa de D. Ramon, rua de Alcalá, em Madrid, na
noute do assassinato de Prim.
* * * * *
Salla espaçosa, guarnecida com modesta elegancia. Porta ao fundo e
lateraes. Janella. Ao meio da scena uma mesa e uma cadeira, e aos
lados duas ordens de cadeiras.

SCENA I
*Izabel e Martinez*

IZABEL
(A Martinez, que se dispõe a sahir) Que precipitação é essa, meu
querido?! Não sei o que me vaticina o coração! Desejava que não
sahisses hoje d'aqui!
MARTINEZ
Louca! Poucos dias faltam para a realisação da tua e da minha ventura!
Terminadas as festas da coroação serás minha esposa á face de Deus.
IZABEL
E se tu não voltares, Martinez? Se os inimigos do novo rei, e elles são
tantos! empregarem um recurso extremo para impedir que elle cinja a
corôa e empunhe o sceptro de S. Fernando?
MARTINEZ
Que vãos terrores te obsecam o espirito! Ignoras acaso que o general
cobre Amadeu, e que entrando em Hespanha o novo rei sob a egide de
Prim, ha de chegar inculume, por entre o respeito e o enthusiasmo das
multidões, até aos degraus do throno que lhe conquistámos em
Alcolêa?
IZABEL
Eu não duvido do prostigio do teu general, nem do valor dos seus
briosos companheiros de Cadix, que ainda hoje o seguem; mas não
creio na boa estrella que os monarchicos devisam onde eu só vejo
negrura e trevas!
MARTINEZ
(Ancioso) Explica-te!
IZABEL
Ouço o que dizem meu pae e meu irmão; escuto as palavras dos seus

correligionarios politicos que aqui se reunem; conheço as valiosas
relações que
Continue reading on your phone by scaning this QR Code

 / 12
Tip: The current page has been bookmarked automatically. If you wish to continue reading later, just open the Dertz Homepage, and click on the 'continue reading' link at the bottom of the page.