Os Simples | Page 2

Guerra Junqueiro
ao sol.
Vae sem cabeçada, em liberdade franca,
O gerico russo d'uma linda
côr;
Nunca foi ferrado, nunca usou retranca,
Tange-o, toc, toc, a

moleirinha branca
Com o galho verde d'uma giesta em flor.
Vendo esta velhita, encarquilhada e benta,
Toc, toc, toc, que
recordação!
Minha avó ceguinha se me representa...
Tinha eu seis
anos, tinha ella oitenta,
Quem me fez o berço fez-lhe o seu caixão!...
Toc, toc, toc, lindo burriquito,
Para as minhas filhas quem m'o dera a
mim!
Nada mais gracioso, nada mais bonito!
Quando a Virgem
pura foi para o Egipto,
Com certeza ia n'um burrico assim.
Toc, toc, é tarde, moleirinha santa!
Nascem as estrellas, vivas, em
cardume...
Toc, toc, toc, e quando o galo canta,
Logo a moleirinha,
toc, se levanta,
P'ra vestir os netos, p'ra acender o lume...
Toc, toc, toc, como se espaneja,
Lindo o jumentinho pela estrada
chan!
Tão ingenuo e humilde, dá-me, salvo seja,
Dá-me até vontade
de o levar á egreja,
Baptisar-lhe a alma p'ra a fazer cristan!
Toc, toc, toc, e a moleirinha antiga,
Toda, toda branca, vae n'uma
frescata...
Foi enfarinhada, sorridente amiga,
Pela mó da azenha
com farinha triga,
Pelos anjos loiros com luar de prata!...
Toc, toc, como o burriquito avança!
Que prazer d'outrora para os
olhos meus!
Minha avó contou-me quando fui creança,
Que era
assim tal qual a jumentinha mansa
Que adorou nas palhas o menino
Deos...
Toc, toc, é noite... ouvem-se ao longe os sinos,
Moleirinha branca,
branca de luar!...
Toc, toc, e os astros abrem diamantinos,
Como
estremunhados cherubins divinos,
Os olhitos meigos para a ver
passar...
Toc, toc, e vendo sideral tesoiro,
Entre os milhões d'astros o luar sem
veo,
O burrico pensa: Quanto milho loiro!
Quem será que moe estas
farinhas d'oiro
Com a mó de jaspe que anda alem no ceo!...

Novembro de 1888.
II
*CADAVER*
I
PRESTITO FUNEBRE
Que alegrias virgens, campezinas, fremem
N'este imaculado, limpido
arrebol!
Como os galos cantam!... como as noras gemem!...
Nos
olmeiros brancos, cujas folhas tremem,
Refulgente e novo passarinha
o sol!...
Pela estrada, que entre cerejaes ondea,
Uma
pequerrucha,--tro-la-ró-la-rá!--
Vae cantando e guiando o carro para a
aldeia...
São os bois enormes, e a carrada cheia
Com um castanheiro
apodrecido já.
Oh, que donairosa, linda boieirinha!
Grandes olhos garços, sorrisinho
arisco...
D'aguilhada em punho lepida caminha,
Com a graça aerea
d'ave ribeirinha,
Verdilhão, arveola, toutinegra ou pisco.
Loira, mas do loiro fulvo das abelhas;
Fresca como os cravos pelo
amanhecer;
Brincos de cerejas presos nas orelhas,
Na boquita rosea
tres canções vermelhas,
Na aguilhada, ao alto, uma estrelinha a arder!
Descalcinha e pobre, mas sem ar mendigo,
Nada mais esvelto, mais
encantador!
Veste-a d'oiro a gloria do bom sol amigo...
O chapeu é
palha que inda ha um mez deu trigo,
A saíta é linho inda ha bem
pouco em flor!...
E os dois bois enormes, colossaes, fleugmaticos,
Na aleluia imensa,
triunfal, da aurora,
Vão como bondosos monstros enigmaticos,

Almas por ventura d'ermitões extaticos
Ruminando biblias pelos

campos fora!...
Ao arado e ao carro presos noite e dia,
Como dois grilhetas, quer de
inverno ou v'rão!
E, submissos, uma pequerrucha os guia!
E nos
sulcos que abrem canta a cotovia,
As boninas riem-se e amadura o
pão!...
Levam as serenas frontes magestosas
Enramalhetadas como dois
altares:
Madresilvas, loiros, pampanos, mimosas,
Abelhões ardentes
desflorando rosas,
Borboletas claras em noivado, aos pares...
E eis no carro morto o castanheiro, emquanto
Melros assobiam nos
trigaes alem...
Heras amortalham-no em seu verde manto...
Deu-lhe
a terra o leite, dá-lhe a aurora o pranto...
Que feliz cadaver, que até
cheira bem!...
Musgos, lichens, fetos,--chimica incessante!--
Fazem montões
d'almas d'essa podridão...
Já n'esse esqueleto seco de gigante,
Sob a
luz vermelha, n'um festim radiante,
Mil milhões de vidas polulando
estão!...
Sempre á fortaleza casa-se a doçura:
Como o leão da Biblia morto
n'um vergel,
Do seu tronco ainda na caverna escura
Um enxame
d'oiro rutilo murmura,
Construindo um favo candido de mel!...
Oh, os bois enormes, mansos como arminhos,
Meditando estranhas,
incubas visões!...
Pousam-lhes nas hastes, vede, os passarinhos,
E
por sobre os longos, torridos caminhos
Dos seus olhos caem bençãos
e perdões...
Chorarão o velho castanheiro ingente,
Sob o qual dormiram sestas
estivaes?
Almas do arvoredo, o seu olhar plangente
Saberá acaso
misteriosamente
Traduzir as lingoas em que vós fallaes?!...
Castanheiro morto! que é da vida estranha
Que no ovario exiguo

d'uma flor nasceu,
E criou raizes, e se fez tamanha,
Que tresentos
anos sobre uma montanha
Seus tresentos braços de colosso
ergueu?!...
Onde a alma, origem d'essas formas bellas?
Em tão varias formas que
sonhou dizer?
Qual a ideia, ó alma, convertida n'ellas?
E desfeito o
encanto, que nos não revelas,
Que aparencias novas tomará teu ser?...
Noite escura!... enigmas!... Ai, do que eu preciso,
Boieirinha linda,
linda d'encantar,
É d'essa inocencia, d'esse paraiso,
Da alegria d'oiro
que ha no teu sorriso,
Da candura d'alva que ha no teu olhar!...
Grandes bois que adoro, p'ra fortuna minha,
Quem me dera a vossa
mansidão christã!
Arrotear os campos, fecundar a vinha,
E nos
olhos garços d'uma boieirinha,
Ter duas estrellas virgens da manhã!...
E tambem quizera, mortos castanheiros,
Como vós erguer-me para o
sol a flux,
Dar tresentos anos sombra aos pegureiros,
E n'um lar de
choça, em festivaes braseiros,
A aquecer velhinhos, desfazer-me em
luz!...
1889.
II
IN PULVIS...
Oh, que noite negra, que invernia brava!
Nem uma estrellinha pelo
ceo reluz!
Chora o vento ao longe com a voz tão cava,
Como
quando dizem que de dor chorava
Toda a
Continue reading on your phone by scaning this QR Code

 / 13
Tip: The current page has been bookmarked automatically. If you wish to continue reading later, just open the Dertz Homepage, and click on the 'continue reading' link at the bottom of the page.